Clube da Dona Menô
Dona Menô

Meu tico e o teco em conflito



Um dia desses atendi uma senhora de  uns 80 anos. Se ela pensa que eu a ajudei, está enganada. Ela, sim, é que me ajudou a  REVER o mundo e me relembrar de coisas que eu precisava sentir na pele.

A observação de um paciente não é suficiente para que saibamos exatamente como ele sente as coisas. Precisamos colocar nosso sentimento (e experiência) pra funcionar, mesmo que queiramos fugir do envolvimento psicológico com o drama de cada um.

Todos no Brasil conhecem, ao menos um pouco, o médico Draúzio Varella, muito badalado no meio televisivo, que só uma pequena parte da população sabe que é um excelente oncologista. Oncologistas têm fama de serem frios, mas não é o caso do dr Dráuzio. Talvez o seu carisma é que o tenha feito chegar à mídia tão brilhantemente.

Uma vez eu assistia ao programa do Jô quando Dráuzio disse que nenhum médico consegue ajudar realmente um doente terminal se não tiver empatia e envolvimento emocional com ele.
 
Eu entendi perfeitamente o que ele quis dizer, pois o tratamento vai além de remédios. A figura do médico diz muito mais que qualquer pessoa, se o paciente deposita no profissional a confiança e o respeito necessários. Compete ao médico não se envolver tão intimamente a ponto de prejudicar sua vida pessoal ou confundir o doente, mas trazer para aquela pessoa algo além de medicamentos e frases evasivas.

Médico é realmente um profissional diferenciado, muitas vezes parecido com o ator que entra em cena para interpretar uma comédia, mas está pensando no filho doente ou na merda que aconteceu com sua conta bancária... Outras vezes vejo o médico como aquele controlador de voo, neuroticamente assistindo o trânsito infernal dos céus através de uma tela, tentando fazer com que aquele pontinho brilhante não esbarre no outro pontinho bem perto, porque, daí, centenas de pessoas explodiriam...

A paciente em questão não aparece no consultório há uns 9 anos. Voltou falando sozinha, coisa com coisa, trazendo a tiracolo uma "enfermeira", muito legal, por sinal.

Em momento nenhum de seus solitários devaneios ela foi incoerente. Ela chorava pela perda de uma filha e sofria profundamente por isso. A acompanhante interrompia suas falas, mas eu pedia para que a deixasse continuar. Enquanto eu resolvia as coisas práticas, a paciente subitamente chorava e se queixava de seu neurologista, alegando que não gostava mais dele...

- “Ela encucou com o médico, doutora! O médico é excelente!”, dizia a acompanhante.

Quis saber a razão de tão repentina ojeriza pelo médico de tantos anos. Ela, a paciente, me explicou que ele não teve paciência com ela na última consulta, quando lamentava das mesmas tristezas que a perseguiam...

Resolvido o problema! Como ela ainda lembrava de mim e confiava em meu taco, a ponto de fazer com que os parentes me achassem de novo (e foi a acompanhante que me achou, através de sei lá que meios), resolvi que ela devia ser atendida por um colega neuro, muito bacaninha e espiritualizado.

A paciente viu em minha dica a solução de seus problemas! Loguinho eu liguei para este meu colega explicando que eu só estava fazendo aquilo, meio antiético, em favor da paciente, que precisava de um salvador, e este salvador seria quem eu indicasse!

“Dá teu jeito, cara!". Eu falava com um médico de ponta (na ponta-cabeça desta vida). Ele tinha que resolver aquilo que a paciente precisava! Ainda bem que o colega é suficientemente normal para poder me entender...

O mais importante da consulta não foi a consulta, mas o que ela falava enquanto eu escrevia pedidos de exames, receitas e conversava com a acompanhante. Ela falou do netinho; falou da falta que a filha fazia; da dor de perdê-la; que queria morrer pra encontrar sua filha de novo.

Ela estava sem controle. Através de seu olhar tão desesperado eu me vi no futuro, em seu lugar- se é que eu vou chegar à sua idade. Será que meu tico e teco vão se conflitar? Será que terei tanto carinho, respeito e cuidado quanto aquela senhora que estava sendo tão bem amparada por seus familiares, justamente numa fase de vida que a clareza de seus pensamentos estava indo embora e seu comportamento não era mais controlado pelo bom senso?

Depois do exame (onde, por incrível que pareça, ela se comportou normalmente) eu senti necessidade de abraçá-la. O abraço foi para tentar passar energia. Falei ao seu ouvido:

- “Eu te conheci mais esperta, então agora eu quero te dar uma ideia:

Se quer morrer pra encontrar sua felicidade de novo, então procure antes ser feliz o resto dos dias que Deus lhe reservou aqui. Existe uma razão para você estar ainda viva e só poderá ficar bem no "outro lado" se conseguir encontrar paz neste mundo - pelo menos tentar!".

O marido dela não entendeu, pois não ouviu. A acompanhante não precisava entender, pois tem uma função muito mais importante, que é a dureza de encarar cada segundo da vida daquela senhora. Eu espero que eu tenha me feito fazer entender através do abraço que eu dei.


Leila Marinho Lage

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