Clube da Dona Menô
Dona Menô

Mexidinho

Hoje foi engraçado. Um momento, apenas um momento de descontração, num dia chato, metódico, que parecia mais um dia. E foi mais um dia, dependendo de como eu  tivesse visto a coisa.

Acordei cedo e me enfiei em contas, cálculos, escrevi um texto bem zangado, descobri o quanto eu preciso ganhar (e não ganhei) para pagar as minhas não futilidades... E preciso tanto descansar... Depois fui correndo para o consultório, esperando que o dia acabasse rápido.

Segunda-feira é sempre assim na vida de qualquer trabalhador que não tem uma renda fixa, nem está com o boi na sombra...

Penso sempre que eu tenho todos os membros, respiro e sou ainda jovem para produzir, além de uma cabeça muito boa.

Dizem sempre que sou maluca. Às vezes, isso me irrita, porque eu não me acho maluca. Muitas pessoas, ditas normais, são tão doidas que eu acho que até um outro doido se assustaria com elas. Será que falar abertamente sobre algo, dizer o que se pensa na hora que dá na veneta, rir e brincar são coisas de doido? Então, eu sou doida...

Estou aprendendo a ser normal e, com o tempo, eu estou me vendo cada vez mais chata por causa disso. Só que as crianças conseguem me ver de forma diferente e eu adoro isso.

Não dou a menor bola pra crianças, até porque elas sujam meu consultório todo. Adoram puxar o papel higiênico do banheiro até a sala e pulam na minha balança até eu perder a paciência. Elas têm atração por recipientes contaminados e conseguem os achar nos lugares mais escondidos e proibidos. No menor descuido, elas entram em lugares não autorizados, procuram bacias extremamente infectadas e tomam banho com todos os germes da face da Terra. Por isso, eu fico de olho aberto nestas pestinhas.

Enquanto estão comendo biscoito e sujando o chão, tudo bem... A minha secretária me conta que a mãe fica alertando: “Não faça isso, menina. Não mexa nisso, menino....”. E eles continuam fazendo exatamente o que querem fazer, até eu mandar minha secretária entregar uma vassoura para a mãe.

Acontece que eles, adultos mascarados como anjos, têm atração pelo meu barraco e acham que aquilo é a extensão da casa deles. É o inconsciente coletivo dos anjinhos...

Pior é que eles não me respeitam e, na maioria das vezes, até me chamam de Leila. Não tem essa de tia Leila, não... Eu sou a Leila e pronto!

Se nasceram comigo e acompanham a mãe desde pequenos, fica mais difícil ainda. Quando as meninas crescem e se tornam mulheres, lembram de sua infância no parque de diversão da Leila. As pré-adolescentes, quando não me conhecem, entram com duas atitudes diferentes: elas se fecham, pedem para a mãe falar e me olham com raiva, ou entram rindo e olhando para minha cara, como se elas me entendessem e me adivinhassem.

Foi o que aconteceu hoje. 

Eu estava muito séria e cansada. Como dizemos: trabalhando de costas.
 

Eu atendia a mãe de uma mocinha de uns 11 anos e tudo corria bem. A menina entrou rindo. Não sei do que ria. Como ela já me conhecia da consulta anterior, talvez esperasse alguma frase engraçada dita por mim.

Eu a olhava e não estava com a menor vontade de brincar, quando a mãe me disse que ela não comia nada, que odiava comida e só comia sanduíches e salgadinhos.

Mais uma vez, enquanto examinava a mãe, eu tentei me desligar de uma outra consulta, que não tinha nada a ver com o que eu fazia com a paciente. Realmente, não estava num bom dia para ser conselheira ou orientadora de crianças...

O cansaço era tanto que eu não percebia no olharzinho lindo da menina, que ria pra mim com admiração e simpatia. Aí, eu sentei, depois do exame feito na mãe, e me detive à sua queixa em relação à sua filha. Era como se eu largasse todas as minhas responsabilidades e meus problemas, para relaxar.
 

E relaxei mesmo... Mas com um diálogo que poderá ser muito útil para ambas e que para mim será esquecido ao longo dos anos.

Quando alguém me diz que eu falei isso ou aquilo, em alguma época, e que ficou marcado pelo resto da vida, vejo que nossas palavras têm efeitos além de nossas expectativas.

- “Quer dizer que a mocinha não gosta de alface, rúcula, agrião, brócolis?...”.

- “Eu sei lá o que é rúcula! Odeio agrião, mas gosto de brócolis...”.

Bem, eu não estava diante de um caso perdido. Se a mãe fazia brócolis para ela comer e ela gostava, então, essa menina está dentro de uma percentagem pequena da população comedora de coisas verdes - apenas não foi incentivada a comer o resto.

O paladar dos alimentos tem muito a ver com a aparência e o cheiro dos mesmos. É costume ingerir brócolis, couve, folha da couve da mesma forma que se come batata, ovo e outros alimentos unanimente aceitos. Algumas verduras produzem odores desagradáveis, quando não ingeridas assim que cozidas - sendo uma das causas para a tal rejeição.

Tudo vai da educação alimentar e dos costumes. É muito fácil observar mães que passaram a vida toda substituindo comidas ricas em vitaminas e proteínas por doces e querem que os filhos comam o que elas nunca comeram.

Eu mesma, quando criança, odiava alface e todas as verduras. Odiava de morte! E minha mãe me ameaçava bater se eu não as comesse. Sopa de legumes, então, era um horror!
 

Um dia, ela sentou no chão e, com muita paciência, me colocou entre as pernas. Fez bolinhos de comida com alface e empurrou na minha boca. Eu amei aquilo! Eu tinha uns 8 anos de idade.

Lembro que o paladar era outro e comecei a perceber como era gostoso comer verduras. Daí, eu percebi que o que eu não gostava era do vinagre (coisa meio genética, pois meu pai também odiava). Descobri que não gosto de nada azedo e tive que substituir ao longo da vida tudo azedo que faz bem por coisas não azedas que também fazem bem.

Tenho uma sobrinha que, quando pequena, aparecia na minha casa pedindo pelo amor de Deus para comer pepino. Tudo tinha que ter pepino! E, olhem que pepino é indigesto! Percebia que ela bebia o caldo da salada de pepino com o maior prazer. Na verdade, o prazer maior não era o pepino e, sim, o caldinho do prato, que levava sal e azeite. 

Fora pepino, ela só aceitava comer macarrão industrializado – estes Kinojo da vida...
Então, tudo que ela comia levava um pouco de azeite. Foi assim que ela descobriu o prazer nas saladas.

Voltando à menina de hoje:

- “Mocinha, quer uma receita infalível para comer bem saladas? Mande sua mãe cortar bem picadinhos a alface, o agrião, rúcula e outras coisas verdes. Tem que ser tudo bem picadinho, senão você só vai querer comer uma folha e olhe lá... ".

A mãe me olhava, já percebendo o trabalho que eu estava inventando para o dia dela... A menina, muito atenta e achando graça naquilo, já começava a armar o inferno que faria em casa...

- “Nas saladas de verduras, você pode colocar um pouco de palmito, também picadinho...”.

- “Eu não sei o que é palmito!”, gritou a menina.

- “Não faz mal. Você vai adorar palmito! Com o tempo, vai descobrir a alcachofra e o aspargo – coisa de gente chic...”.

A mãe não acreditava que a gente tinha parado a sua consulta para falar de culinária. Ela não tinha se queixado? Então?... Eu dava a minha receita, ora!

- “Numa bacia grande misture tudo e acrescente cogumelos. Sabe o que são cogumelos? São muito nutritivos!”.

- “E caros”, retrucava a mãe.

- “...Corte-os em quatro, que vão render”.

A menina achou engraçada a gozação com a mãe e entrou na minha. Ali a mãe era a vítima e nós duas, as déspotas. Isso agradava a menina, já que toda criança é sádica...

- “Cozinhe ovos e os pique nesta gororoba. Depois coloque um pouquinjo de azeite e sal. Vinagre fica por tua conta.... Pode colocar mais coisas, como presunto e outras porcarias, desde que coma tudo, ok?”.

A menina se deslumbrava com um universo de coisas que poderia inventar na sua refeição. Eu percebi pelo sobrenome que elas eram de origem árabe e falei nas maravilhas do tabule. Aí, sim, a menina começou a se interessar. E falei também no grão de bico (tanto na comida, quanto na pasta), na lentilha com arroz e cebola, etc.

- “Há quanto tempo sua mãe não faz essas coisas para você?...”.

- “Põe tempo nisso!”.

- "Pois, é... Depois ela diz que você não gosta de comer. Eu acho que ela é que não gosta de fazer comida.".

"Outra coisa legal é misturar a carne moída com chuchu, cenoura, azeitona, vagem e tudo quanto é legume, desde que sejam muito bem cortadinhos - é a jardineira. Pode colocar todos os alimentos, cada um de uma cor. Fica lindo e você pode dar um toque delicioso com algum tempero de sua preferência”.

O sorriso cúmplice de nós duas desmascarava a mãe e, por isso, continuei:

- “Bem, sua mãe disse que você não come arroz com feijão. É fácil! Já comeu mexidinho? O Jô Soares come! E come até frio!”.

- “Mexidinho? Que isso?”.

- “Olhe aqui, garota. Mexidinho é comida de pobre que não tem tempo pra nada, mas é maravilhoso! Ovo é comida que o todo mundo gosta e ele é base de muitos alimentos. Quando ingerido sem excesso, faz um bem enorme. Pegue arroz com feijão velho, que sua mãe fez, mande-a misturar ovo mexido e bota pra dentro! É divino! Uma salsinha misturada faz o toque especial”.

Ela estava maravilhada com as opções para enlouquecer a mãe e entendia tudo perfeitamente. Na hora da saída eu perguntei para a menina se ela tinha entendido tudo o que falei. Ela disse que tinha anotado tudinho...

Com certeza esta futura mulher vai comer bem (pelo menos por uma semana) e vai guardar direitinho do dia em que ela “tricotou” com a ginecologista da mamãe.

Leila Marinho Lage
Rio de janeiro, 23 de julho de 2007