Clube da Dona Menô
Dona Menô

Alta

Estou tentando arrumar as folhas de uma cartinha que escrevi pra minha mãe e passar para o pc.

O problema são as lágrimas. Vieram todos os momentos já passados, anos a fio de luta e sofrimento para salvar uma vida.

Após sua morte, em 2003, encontrei uma cartinha escrita por ela, quando eu ainda era recém-nascida. Ela dizia estava lutando para sobreviver somente por minha causa e, por isso, valeria a pena passar por tudo.

Escreveu que, independente da minha profissão, um dia, eu ainda iria salvar várias vezes sua vida e lhe aliviar sofrimentos.

Nunca ela me induziu a ser nada, muito menos médica – eu queria ser escritora...
 
Minha mãe tinha uma gravidez de risco, por ter um tumor endócrino raro, desconhecido na época (Feocromocitoma), que acarretava níveis de pressão arterial absurdos.

Ela segurou esta barra toda durante a gravidez e não achavam onde se localizava o tumor. Fui tirada às pressas, prematura, numa situação de risco para as duas. Sobrevivi e ela continuou internada.
 
Só depois de um ano ela foi submetida a uma exploração cirúrgica. Aprendi a andar e falar com meus tios e primos. Sua maior tristeza era eu não a reconhecer como mãe, depois da sua alta.
 
Eu me formei e, coincidência ou não, ela passou a entrar e sair de hospitais – insuficiência cardíaca, dois cânceres raros, infecções, tudo. E eu junto - mais que um anjo da guarda, mas um cão de guarda; lutando, estudando, brigando com Deus e o mundo, fazendo todo mundo trabalhar e não desistir.

E é de alta hospitalar que eu quero falar.
 
Parece bom, né? Ir pra casa bem, depois de um longo tempo de estada forçada num hospital. Nem tanto... Pensando em quem perde um órgão, quem fica mutilado ou com seqüelas graves, a vida seguinte traz medo e muita angústia.

Nas altas, quando dava, eu a levava para passear. Às vezes, a permitia comer tudo o que não podia, fazer tudo o que era proibido. Não dava pra brigar.... Aquela mulher estava viva por teimosia e por minha persistência. Tinha que haver tréguas em tanto sofrimento.

De repente, eu me lembrava de minha posição e me portava como uma enfermeira do III Heich, como ela falava - a “fraunlein Hertha".

Em 1986, depois de uma alta hospitalar, após termos morado num CTI por dois meses, eu a avisei que estava “bem” para ir pra casa. Seu abdome estava totalmente aberto, depois de uma complicação cirúrgica. Os cuidados iriam continuar em casa, mas, poxa, que bom ir pra casa!

Ela me olhou como um cachorrinho abandonado, como eu vira tantas vezes, e falou que estava com muito medo de ir embora naquela situação.

Até hoje eu vejo o mesmo olhar nos meus doentes. Olho de “quero colo, tô com medo da vida”.
É, nessa hora, que precisamos tanto de alguém por perto para nos acudir.
 
Aqui entra a carta a minha carta, premonitoriamente em resposta à sua:

“Mãe, encare-me, hoje, não como a médica ou a filha, mas como alguém que lhe admira muito.
 
Quando a vejo deitadinha, triste e pensativa, dá vontade de te abraçar muito e eu me controlo para não o fazer e começar a chorar. Não por pena, mas por saber o que senhora passou.

A senhora recebeu a bênção de estar viva, mas não dá pra ser feliz, porque ainda não lhe vi mandando todo mundo pra puta que pariu e amaldiçoando o dia em que você nasceu. Como nas vezes em que praguejou ser dona de casa, das vezes que xingou as vizinhas, os parentes e todo mundo que lhe incomodava. Era só se aborrecer para logo sair um torpedo pela boca.
 
Será que morreu alguma coisa aí dentro de você? Provavelmente muita coisa está nascendo...

Eu também já estive numa cama de hospital e, também, lhe escondi os meus dramas, mas era tão bom sentir que existia alguém ao nosso lado que nos amava - como eu te amo.
 
Eu vi seu medo na hora de sair daquele hospital. Parecia um passarinho de asa quebrada, tentando pousar em um campo para poder se recuperar.

Sei que se sente triste, insegura e revoltada. Só não sei porque não vem seu choro. Será que tiraram tanta água que o olho secou?

No dia da alta, eu vi seu medo estampado nos olhos. Esses mesmos olhos que agora não choram e precisam tanto disso. Você é leoa e não morde.

Como sempre foi nossa vida, com tantas dificuldades e tragédias, mas com lindas gratificações, eu lhe peço que se livre deste sono acordado e se escore em mim, que estou sofrendo, pois não sei tratar sua alma.

Todos ficaram órfãos com sua ausência. Pessoas que sorriram com sua alegria e se levantaram por sua força. A senhora conhece a fórmula que fecunda a terra mais árida e põe vida e verdade na escuridão.

Volte a ser martelo, que bate, mas constrói. Deixe-me ser a mão que o levanta, para ele não bater mais do que deve e não lhe machucar.

Eu preciso de alguém para coçar o meu dedão do pé lá na sala e ainda não recebi a minha ALTA.

Quero que este olhar de medo seja substituído pelo brilho da esperança; que encontre alívio no que conseguiu realizar e colocar em tantos corações, que agora se alegram por sua sobrevivência.
 
Tô lá na sala esperando. Não demore”.

Rio de Janeiro, 2005
Leila Marinho Lage