Minha aura
Consultório médico é tudo igual, em qualquer lugar do Rio de Janeiro: ou ele está cheio demais em um dia ou, no outro, está deserto - todo mundo falta.
Às vezes, penso que as pacientes se comunicam telepaticamente para combinar o dia de sumirem, sem, ao menos, avisarem. Depois remarcam ou aparecem com a desculpa de uma emergência.
Fico imaginando a razão de isso acontecer. A princípio, hoje seria um dia excelente para compras, ir ao médico ou passear: está com uma temperatura agradável, um céu lindo, não venta e tudo está muito calmo na cidade, pelo menos, até agora.
Até ontem a temperatura girava em torno de 12°C, mas a sensação térmica dentro de casa era de uns 6... Os efeitos da frente fria podem ser observados pela quantidade de gente gripada, com crise alérgica e piora do estado geral em várias doenças base, como câncer, cardiopatias e infecções crônicas.
Todo mundo no frio fica mais doente, pelo menos os cariocas. O assunto aonde se vai é como vai o tempo e como pode termos temperaturas de 40 graus. As pessoas se encolhem, esfregam os braços e contorcem o rosto. Eu até dispensei que as pacientes retirassem suas roupas para trocarem por um roupão na hora de examinar. Não dá! Já basta elas sentirem meus dedos congelados em suas peles.
Comprei um aquecedor de ambiente – coisa que jamais um carioca pensaria em fazer. Os aquecedores estão em falta no mercado e eu tenho que agradecer a papai do céu por ter conseguido um vagaba, pequeno, que me obriga a ficar quase abraçada nele, para poder trabalhar no computador.
Quando eu morava em Teresópolis, na época da faculdade, eu colocava a garrafa de Coca-Cola na janela e num instantinho estava gelava. Ontem à noite fiz a mesma coisa aqui na varanda de casa. Para não falar no manto de gelo que se formou nas verduras da geladeira, o que me lembrou que estava na hora de regular o termostato para menos frio.
Geralmente economizamos energia elétrica no inverno, caso o chuveiro seja a gás (o que é bem mais gostoso). Só que agora, com este novo companheiro que me aquece nas minhas noites frias, devo calcular se não seria melhor desligar o freezer, para compensar o gasto. Um aquecedor elétrico é um circuito de energia que exige mais gasto que um ferro elétrico ou uma máquina de lavar, que são os aparelhos domésticos que mais aumentam a conta de luz.
Recentemente um motorista de táxi me contava que ele não abdica do “seu” ar refrigerado no verão, que trabalha para ter estes confortos e que estava adorando o frio. Bem, cada doido com sua mania... Como o caso de quem adora tirar férias no inverno e viajar para lugares congelantes. Os amigos me escreverem dizendo que os dedos estão duros, mas que tudo é muito lindo...
Pelamordedeus... Minha pele descasca, meus lábios racham, eu espirro o tempo todo e grito toda vez que sento no vaso sanitário, quando acordo! Até o ato de lavar as mãos – coisa que tenho que fazer a cada meia hora, por causa do meu trabalho - me avisa que os canos estão servindo como serpentinas de um congelador.
“Quando chega o verão, cara?”. Esta é a pergunta que me vem na cabeça o tempo todo. Eu olhei do lado de fora do meu consultório e procurei o termômetro da rua, que acusava 28 graus de tarde. As pessoas na rua andavam calmamente, até mesmo os homens com ternos, que supostamente são os que mais correm. Muitos idosos saíram com seus casaquinhos e caminhavam passo a passo. O trânsito estava perfeito.
Percebi que ainda estamos sob o efeito dos Jogos do Pan, quando a cidade nunca antes foi tão bem policiada e os trombadinhas e traficantes “deram um tempo”, talvez já maquinando os ataques futuros.
Minha faxineira, ou melhor, minha babá, antes de ontem me interrompeu o trabalho no pc, encostou no umbral da porta e me falou:
“Sabe o que eu estou sentindo? Uma sensação de liberdade” – exatamente estas palavras.
Perguntei a razão de tal devaneio ao meio-dia. Ela olhou para cima, como se estivesse olhando para o nada, e me disse que acorda cinco horas da manhã para ir às casas aonde trabalha, pega o trem e depois volta de noite, também no trem. E ela via famílias inteiras pegando este meio de transporte, brincando e ainda torcendo pelos jogos que acabaram de assistir. Ela viu o quanto a cidade, mesmo na baixada fluminense, que seria bem longe da badalação, estava mais alegre e tranqüila, apesar do frio e das chuvas.
Então, num momento de descanso doméstico, eu concluí que o Rio de Janeiro poderia ser assim o tempo todo, se houvesse segurança e organização.
Neste período dos jogos, mesmo com toda a frente fria, nossos hotéis ficaram superlotados, os restaurantes cheios, muita gente ganhou grana em todos os setores, mesmo não sendo diretamente ligados ao turismo.
Todo mundo ganha com uma cidade aonde há administração, boa vontade e policiamento. Havia um guarda em cada esquina e houve, mesmo bem antes dos jogos, um forte esquema de repressão ao crime organizado.
Até campanha de vacinação para Rubéola foi feita por causa dos turistas – mesmo que muitas mulheres vacinadas, acidentalmente tenham engravidado por terem sido muito mal orientadas nos serviços de saúde – mas isso é outro papo, que vai ser esquecido com o tempo - até porque o risco da vacina é muito pequeno, porém está totalmente contra-indicada para gestantes.
Fiquei muito pau da vida por ter deixado de marcar pessoas que necessitavam ser atendidas, para não ocupar o horário das que hoje faltaram sem ao menos dar uma desculpa. Quando é verão de 41 graus, elas faltam por causa da praia. Se está chovendo (aqueles torós danados), o Rio pára – ninguém anda, ninguém dirige, o povo fica no trânsito. Se o frio aparece, aí, meus amigos,...o carioca hiberna.
O que falar de um dia maravilhoso como hoje? Eu não entendia nada: Agosto, as férias terminaram, o tempo legal, meio da semana!
Bem, eu saí mais cedo, desci no elevador, coçando meu rosto e minhas mãos ressecadas com o estrago do tempo. Passei pela recepção e Seu Fernandão (o porteiro) me parou: “Doutora, a senhora está com uma aura muito boa!”.
Pensei comigo: "Será que ele está vendo mesmo minha aura?”.
- “Obrigada, Fernandão, mas, na verdade, eu hoje estou meio puta da vida, sabe?”.
- “Não, senhora.. Sua aura é de uma mulher apaixonada”.
O porteiro do prédio aonde moro disse semana passada que eu também estava com uma aura boa, que passava alegria – em plena crise existencial. Eu acho que os porteiros são experts em auras...
Já na rua, eu tive que parar para falar com uma recente mamãe, que eu fiz o parto. Ela levava o pimpolho no carrinho pra passear; consultei uma senhora, paciente, que levantada a calça para eu ver uma pereba na perna; ouvi as crianças da escola cantando; observei um pedreiro que parou o trabalho para fumar um cigarrinho ao sol; fiquei admirada porque todos os carros, que passavam numa poça d’água da chuva de ontem, diminuíam a velocidade para não me molharem numa calçada estreita – coisa de europeu, ô, meu!
Ao chegar em casa, fui logo colocar os casacos e colchas na máquina e aproveitar o sol para secarem, pois, de acordo com a previsão da meteorologia, o frio vai voltar neste fim de semana e com força total. Aí, foi que me dei conta do fenômeno! É isso! Quem está em casa faz, neste momento, a mesma coisa – lava roupa.
Rio de Janeiro, 2 de agosto de 2007
Leila Marinho Lage
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