SORTE DE PRINCIPIANTE
Eu tenho uma pontaria exata. Posso não ter uma visão privilegiada, mas tenho um senso de direção bom, pelo menos nos dardos. Talvez seja sorte de principiante... Dizem que quem tem molejo pra coisa, já nasce com a boca torta, mesmo antes de fumar o cachimbo, apesar de que eu sempre achei que treino para qualquer coisa é imprescindível. Resumindo a ópera: aptidão e preparo são condição sine qua non para qualquer tarefa bem realizada. Assim me vi diante de um gerente de banco, um sub-gerente, para ser mais exata. Alguns bancos aqui na minha terra têm nomes indígenas. Itaú, por exemplo, quer dizer pedra, na língua tupi. Aymoré significa cheio de energia, na mesma língua tribal. Desta forma, apelidarei o meu novo banco, que se chamará Banco Tupiniquim, que quer dizer quem nasceu no Brasil, portanto, banco do Brasil... Fui obrigada a abrir uma conta-salário no BT (Banco Tupiniquim), pois assim exigia o contratante. Eu já tinha sido cliente deles muitos anos antes, só para receber honorários de um plano de saúde, mas me descredenciei do tal plano e não me interessava enfrentar filas, pois o banco é muito cheio de brasileiros... Odeio fila de brasileiros! Adoram aproveitar a oportunidade para conversarem sobre as notícias da vez! Eu não sei se odeio as notícias, as filas ou os próprios brasileiros enfileirados. Marquei até hora para assinar o contrato da conta. Muito chique... Só que tive que passar pelo que passa toda pessoa que entra numa porta rotatória de banco: tirar todos os metais de dentro de minha bolsa. Já sabendo sobre tal condição para entrar, coloquei celulares, chaves, bolsinhas de moedas e tudo mais numa caixinha atentamente vigiada pelo segurança. Não prestou, porque a porta travou mesmo assim, quando eu tentei entrar. Fiquei imaginando o que podia estar impedindo minha entrada. Seria minha aparência ameaçadora? Afinal eu estava com olheiras de tanto trabalhar e uma cara muito feia. Não seria isto... Talvez um prendedor de cabelo ou, quem sabe, um clipe?... Decidi abrir minha bolsa, descaradamente, para o guarda olhar no interior - e a população toda do Rio de Janeiro também. Meu leão de chácara me informou que a borda de metal da minha bolsinha dos óculos estava sendo detectada. Obviamente não acreditei e quase disse para ele que o problema era o meu DIU... Serelepe e faceira, depois de ter superado a primeira barreira, subi as escadas atrás da moça que ia conferir papéis e me fazer assinar papéis. A única coisa que eu queria era abrir uma conta simples, sem pagar encargos e taxas. Eu já tinha levado todos os documentos e era só formalizar uma operação que achei ser mamão com mel, coisa simples, rápida. Ledo engano... Aproximava-se a hora de eu atender em meu consultório e sabia que o mesmo estava cheio de gente doente. Quando eu vi o salão do segundo andar com poucas pessoas e vários atendentes, pensei que ia dar tempo pra tudo que eu precisava fazer. Cheguei perto de um senhor que assinava documentos e perguntei onde se encontrava a senhora fulANA. Ele me olhou e voltou a baixar a cabeça, compenetrado, como se eu tivesse sido pulverizada para o espaço. Calmamente eu me dirigi a outro funcionário, o qual foi até solícito demais, correndo ao encontro da minha recepcionista. Logo inferi que o primeiro era o gerente chefe e o segundo aspirava o cargo dele – e vai conseguir. Logo chegou fulAna, sorridente, me chamando pelo nome e dizendo para mim em salamaleques: “Sente-se aqui e aguarde a numeração da sua senha” – apontando para um quadro eletrônico, que mostrava o número 24. Assustei-me, pois o guarda lá de baixo me mandou subir direto. Daí, tive que descer as escadas e pegar uma senha, a qual era 55... Quase tive um treco! Eu procurei meu celular para ver a hora, que já era a de eu estar trabalhando. Resolvi, então, fazer ligações importantes. As ligações acabaram e não saía do número 24 naquele quadro dos infernos. Foi quando eu percebi um espertinho levantar, assim que um dos atendentes perguntou quem era o próximo. O espertinho-mor tinha acabado de chegar e percebeu antes de todos que aquele monitor - ou mural, sei lá o nome - estava enguiçado. Ele passou à frente de nós, ali sentados, e se deu bem... Definitivamente eu não estava no meu mau-humor habitual. O sono era tanto que achei até legal sentar um pouco. E o ato de sentar fez-me dormir pelo menos uns 10 minutos, primeiramente com a cabeça pra trás e boca aberta, e depois - quando eu me dei conta - com a cabeça apoiada na cadeira da frente, cutucando as costas do senhor que ali estava. Parecia até que eu estava chorando, mas, na verdade, eu tirava uma soneca maravilhosa, que só foi interrompida porque eu sonhei que o guarda que estava atrás de mim roubava a minha carteira de dentro a bolsa, pois esta estava na cadeira ao lado. Daí, despertei de vez, ajeitando minhas coisas no colo e olhando séria para o guardinha, que me olhou também de cara feia... Fiquei na dúvida se ele estava tentando pegar a minha bolsa ou se estava protegendo meu sono e minha indefesa situação. Incorporei Dona Menô e movimentei aquela turma de brasileiros conformados: - “Gente, vamos organizar nossas senhas? Quem é número 54?”. Uma moça levantou a mão. Com isto, todos os gerentes que atendiam nas mesas perceberam que começava um motim e resolveram ser mais ágeis. Pedi à moça pra me avisar quando levantasse para ser atendida, uma vez que estava arriscado eu dormir de novo. O pessoal riu e todos começaram a medir os movimentos dos seus vizinhos e mindinhos. A palavra “o próximo” nunca foi tão bem-vinda, quando foi a minha vez. Sentei diante de um gerente - subgerente, pra ser mais exata - que usava seu computador como extensão de seus neurônios. Comentei logo de cara que o instrumento de seu trabalho (o PC) estava mal posicionado, uma vez que se situava muito acima de seus olhos e o fazia quase encostar a nuca nas costas para ler. Imediatamente ele explicou que o problema não era este, mas, sim, a presbiopia, os óculos multifocais. Concluí nesta primeira investida que ele tinha a minha faixa etária e a mesma visão que a minha. É sempre bom quando a gente pode conhecer o alvo antes de lançar a seta. O computador passou a ser o empecilho. Muitos dados para serem inseridos. Pior ainda foi quando ele verificou que eu já tinha um cadastro antigo no banco e teve que atualizá-lo, pois a antiga conta tinha sido encerrada. Eu me emocionei quando vi na tela o telefone principal anotado: 304715 e depois 2-304715. O telefone que me acompanhou desde que nasci até o ano de 2002... Quantas pessoas ainda lembram deste telefone! Foi marca registrada na minha vida inteira, tanto pessoal quanto profissional, mas não existia mais. O educado funcionário se mostrou ainda desacostumado com os programas e preenchimento dos formulários, e se justificou, ao comentar comigo que vinha de outro banco e que havia apenas 2 meses que lá trabalhava, depois de anos de espera, após ter passado num concurso. Eu respondi que ele era um felizardo de ter um empregaço como aquele e que eu bem queria ter um igual. Ele se admirou, uma vez que viu a minha profissão. Ele não tinha noção de como é bom ter um plano de saúde grátis, milhares de facilidades financeiras e estabilidade, coisas que um profissional liberal só tem se pagar muito caro por elas. De repente ele olhou para o monitor e soltou um semigrito: “Ih!”. Ele verificava meus dados, mas eu não podia imaginar a surpresa que aparecia. Se ele fosse médico e eu a paciente, e se ele estivesse analisando meus exames, morreria ali mesmo. Comentei o que senti e ele alegou, para minha tranquilidade (ou não): - “O sistema está extremamente lento. Nunca vi nada igual. Tudo está sendo bloqueado”. Ainda pensei ser inexperiência dele, mas o mesmo se mostrava simpático e tranquilo, até divertido, apesar de não ser nada divertido eu estar 2 horas dentro de um banco. Perguntei se era o antivírus, ao que ele confirmou. Brinquei com ele, dizendo que estavam caçando meus dados e eu perderia toda a minha fortuna. Ele balbuciou: “Oh, céus...”. Antes de me preocupar com o que acontecia, lembrei de uma série de desenho animado dos estúdios Hanna-Barbera, onde Lippy era um leão amigo de Hardy Har Har, uma hiena pessimista, lá pelas bandas dos anos 60. Outra seta no alvo: meu gerente tinha quase a mesma idade que eu e guardava jargões que eu também costumava usar. - “Oh, céus. Oh, vida. Oh, azar!”. O que foi que deu errado?””, eu lamentava. Neste momento todo o banco parou; todos os computadores pararam. A única coisa que eu pude exclamar saiu tão espontaneamente que ele nem se assustou: - “Todo castigo pra corno é pouco!”. Ele falava comigo sem tirar o cérebro da tela, tentando teclar mil opões ao mesmo tempo. Resolvi ajudá-lo. Como o sistema parou de vez, ele decidiu escanear meus documentos e sumiu. Quase que eu dormi de novo, bem em cima daquela mesa. Ao retornar, ele me ouviu balbuciar palavras ininteligíveis, ao que perguntou: - “Está com algum problema?”. Respondi que não ligasse, pois eu estava conversando com meu DIU. Como ele não entendeu, ficou por isto mesmo... - “Por favor, assine todos estes formulários”, ele solicitou, mas exigi formulários duplicados, pois eu tinha adquirido ao longo dos anos duas assinaturas. Ele me sugeriu que escolhesse uma apenas, porém eu expliquei que jamais lembraria qual a que eu devia usar, pois o Alzheimer não ia deixar. Como ele era de origem alemã, decerto entendeu meu diálogo, e por este motivo tivemos trabalho dobrado. Começou um bate-bola gramatical e fonético: - "Ponha sua rubrica nestas folhas. Comece pelas folhas da frente e depois as folhas de trás...", ele orientava. Quase dei nele. Nem loura eu sou... E percebi que ele acentuava a letra u (rúbrica). Para não parecer uma professora primária, eu dei uma de chata: - "Onde é mesmo que eu coloco a minha "RUBRÍCA?...". Ele insistia: "A sua RÚBRICA tem que estar aqui nestes espaços". Desisti e aguardei que ele passasse pra outra: - “Bem, apagarei este 304715 daqui...”, decretou meu juiz, já com o dedinho no DEL. Gritei: “Não! Deixa como telefone secundário, mas não apaga...”. Ele não entendeu que era uma coisa assim meio sentimental. É claro que excluiu este velho número de telefone, ao som de bye-byes meus. Mas nós exultamos quando ele clicou no ENTER e tudo se concluiu. Até os colegas do meu gerente (subgerente) estavam intrigados com tanta satisfação – ele com seu novo cargo, e eu com o meu, que tinha a ver com aquela conta no banco Tupiniquim. Antes de eu sair, agradeci a Deus por meu sub não ter a mesma profissão que a minha, uma vez que a certa hora ele disse em alto e bom som: “Bem que eu percebi que tinha esquecido uma coisa...”. O outro deslize foi quando ele me confessou que ia consertar umas coisas lá, antes que virassem um desastre, quando o computador deu pau. Imaginem se ele estivesse numa cirurgia e o paciente estivesse acordado! Mas como médico, ele foi o melhor gerente de banco que eu podia ter encarado num dia de semana cansativo. A informalidade, misturada ao respeito e boa vontade, fez com que eu não protestasse pela espera. Quando eu me virei para os meus colegas “de banco de banco” deu vontade de me dirigir ao número 56, avisando: “Venha logo, que eu já resolvi meu lance aqui!”, mas todos dormiam. Leila Marinho Lage Março de 2011 http://www.clubedadonameno.com |