Arcanjo da guarda Eu já estava nervosa com aquela espera. Aqueles quadros de adolescentes com sorrisos blindados azuis estavam me dando nervoso...
Como pode metal nos dentes ser bacana? Bem, bacana deve ser, pois não é qualquer um que tem grana pra colocar a dentadura no lugar... O que mais me dava chilique era que eu estava ali para tirar o resto de osso que restava na minha boca. Por falar nisso, dente não é osso... É algo mineral que Deus colocou na nossa boca para comer, para nos proteger e para ficarmos pobres com dentista – como eu naquele dia... Fora o insuportável medo de tudo o que o dentista poderia fazer no meu buraco de cima... Cara, que coisa horrorosa! Só mesmo apelando para os anjos da guarda! Eu tenho um, o qual não me deixa ficar banguela. Ele me protege o tempo todo e conversa comigo, me dá conselhos, me alenta enquanto eu sou torturada... Na verdade, um arcanjo - anjo da arcada dentária. Não que meu dentista seja um terror, e não o é, pois cuida de mim desde meus dentes de leite. Hoje eles são de manteiga... Começando que ter dentes de leite é sacanagem. Os pais pagam uma fortuna para consertar coisas que vão cair em breve. É como construir um prédio enterrado num banco de areia. A mãe da gente diz “Escova os dentes! Passa fio dental dente por dente! Bochecha! Escova a língua até vomitar, senão vai ouvir o barulho daquela britadeira!”. A gente passa a vida toda sendo obrigada a limpar a boca, principalmente depois de passar o dia todo proferindo coisas sujas, e depois vem um cara dizendo que você tá desabando oralmente! Você tira de onde não tem, deixa de comer e deixa de comer mais ainda quando ele te tira os molares. “Na tortura toda carne se trai”. Zé Ramalho cantava no som da sala de espera (e que espera!). Já viram como é torturante a espera? E a gente que não cochile de boca aberta, porque, se vacilar, o cara começa a te futucar dali mesmo. Aquela secretária, que nem te olha e, quando te olha, acha que você é um dente gigante pronto para ser britado; aquele cheiro de resina com pasta de dente, só pra nos enganar o olfato; alguém lá dentro gemendo baixinho: “Hum! Hum... Hum!”. A gente não sabe se estão sentindo dor, discordando do orçamento ou estão gozando... Nestas horas eu aciono meu anjo. Eu não gemo: eu grito e me contorço! Se é pra sentir, vamos sentir direito, não acham??? Chega meu anjo... Ele não é daqueles anjos lindos, brancos, com asas enormes e cabelos louros... Ele é do tamanho do meu polegar, tem cabeça chata e nariz do porquinho, com o chapéu do Lampião e mastiga fumo. A antítese do herói. Talvez o que Deus me reservou pelas milhares garrafas de Coca-Cola que eu consumi ou pelas coisas que eu deixei acumuladas na minha cavidade de cima... - “Tá chegando tua hora..”. - “Depende do que você considera hora, po! To aqui há duas horas lendo estas revistas do mês retrasado!”. - “Hora de você abrir a boca!”. - “Pois, é, rapaz... Aqui a gente abre a boca pra ficar calada...”. - “Que nada! Eu te conheço! Você vai conseguir gritar e eu estou aqui para te acalmar...”. Não sei até hoje se meu anjo da guarda me protege ou se me deixa mais irritada... O cara me lembra o tempo todo que eu vou babar, me contorcer e passar pelo ridículo de não conseguir levantar daquela cadeira pra cuspir, porque a mesma está a trinta graus e minha coluna não suporta tal contorção... Já viram como é desagradável quando o odontologista vira e diz “Pode cuspir”?... Quem disse que eu consigo? Primeiro eu teria que sair daquela posição! A gente está deitada, quase com o crânio no chão e, de repente, tem que levantar e rapidinho largar baba naquela pia infecta, com uma torneirinha nojenta, o chafariz dos infernos... E ai de você que não leve o corpo pra cima, que o cara te empurra logo de volta pra posição original, achando que você engoliu tudo... Desta forma, eu digo “Não precisa...” - gargarejando as palavras. Pior ainda é a atendente achar que chegou a hora do excesso de cuspe... Sem mais nem menos ela te olha profundamente e coloca um chupador na tua boca. A gente já está com um monte de treco na boca, tentando equilibrar a saliva, e aparece mais um tubo... O sugador suga tudo, até tua mucosa labial, menos a baba... A gente já está a ponto de sufocar, quando o dentista começa a conversar contigo, esquecendo que você tem um abridor de lata numa bochecha e uma pá de cimento na outra... - “E, aí? Como vão as coisas?...”. - “Hum... Hum...”. - “Abre mais, não coloca a língua, não molha... Levanta a cabeça... Vou botar só um pouquinho... Não dói quase nada... Não... Não faz assim... To enfiando só a metade...”. Putaquipariu! E a gente paga pra isso! Ele é que devia me dar uma grana extra! Aquela agulha entra na carne, entra na cartilagem, entra em um monte de coisa em você. Mesmo convivendo constantemente com a nossa língua, descobrimos que havia uma porrada de coisa desconhecida na boca – cáries, tártaros, gengivites, bichinhos nos corroendo e canal! Eu tenho um monte de canal no corpo e justamente um que eu não conhecia vai me dar tanto problema! Com o anestésico a gente começa a ficar tonta... O médico diz que é psicológico... Você suporta até onde pode, pra não pagar mico, mas a coisa vai ficando intolerável e você começa a achar que vai morrer ou vai faltar oxigênio. Ele pensa que você começou a ficar tranquila e, na verdade, está totalmente paralisada, com medo de ele transpassar a tua face ou a tua testa com as agulhas. O coração palpita... A gente sua... Parece até a primeira relação sexual... E lá vem meu anjo: - “Vixi, mizi fia! Suncê pareci inté uma seriema no cio!”. Aquele anjo de merda em miniatura está acima de minha cabeça, sentado no encosto da cadeira, mascando aquele fumo e me sacaneando, como se não bastasse o dentista todo paramentado, com máscara e touca, achando que a gente é um pote de germes. A única vantagem é que se for antes do almoço, a gente não sente o mau hálito - o meu e o dele... Aquele duende Tupiniquim me alerta: - “Venha, cabra da peste! Aperta alguma coisa!”. Em pensamento, eu pergunto pra ele: - “O que mais, cara?! O apoiador de braço já tá até furado com minhas unhas!”. - “Ó, xente! Aperta a coisa mais mole que encontrar! Certamente acertará as coisas dele!”. - “Impossible! Ele já senta estrategicamente, depois de tantos anos de experiência comigo! Já fez até uma varicocele por causa disso, quando eu tinha uns 10 anos!”. - “Intaum, o que resta a fazer é apertar os seus próprios genitais!”. - “Cu é órgão genital?!”. - “Não... É órgão cagador... Quer dizer, depende...”. - “Tá apertadinho....”. - “To vendo pelas pernas...”. O doutor se desdobra pra me acalmar. Ele acha que eu sou neurótica e que me descontrolo à toa! Como posso estar à mercê de uma coisa pontuda, fina, que vai ser enterrada na minha boca, e não ter medo?! Minha boca começa a ficar boba... Dá vontade até de fazer uma autofagia; a língua passeia que nem uma naja bêbada por entre aquele aparelho dos infernos, que ele coloca pra arreganhar a gente. A broca faz barulho no nosso ouvido, e o insistente indicador do doutor empurra nosso lábio dormente por dentro... Imagino que se eu me visse no espelho, jamais teria tesão por mim: uma lagartixa filhote pedindo mosca pro almoço... Obturar, preencher espaços... Aquilo lá mais parecia uma “obituração” (óbito dos meus dentes). - “Xi... Não vai dar pra salvar este aqui... Tá todo fraturado. Vou arrancar!”, diz meu carrasco. - “Que, doutor?! Vou ficar banguela?”, pergunto eu, tentando fazer mímica para ser entendida. - “Ninguém fica banguela comigo! Eu enfio um titânio na tua boca e penduro um dente novo!”. - “Quanto?”. - “Uns três mil paus cada”. - “Não perguntei isso”. Daí, tiro tudo quanto é objeto da boca, sento e olho pra ele séria: “Quanto tempo tenho pra pensar?”. Então, novamente o anjo se pronuncia: - “Todo o tempo do mundo, minha filha... Assim que descobrir que não vai poder rir nem comer uma picanha na tábua, vai começar a se acostumar com a ideia”. O dentista alerta: - “A dentição é mais do que estética: é funcionalidade, é saúde”. - “Doutor, eu não tenho como ter dentes novos! Bota rot, bota dentadura, bota pivô, faz qualquer coisa!”. - “Você é uma moça bonita e merece coisa melhor”. - “Começando pelo meu anjo...”. - “Que?”. - “Deixa pra lá...”. Beijos soprados da Menô! Texto de Leila Marinho Lage Rio, 16 de dezembro de 2007
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