Chorão era um gato de rua. Como a “Dama e o Vagabundo”, minha gata Clarence e ele faziam um par romântico... Eu não sabia de onde ele vinha por muitos meses. Acabei tendo que cuidar dos dois... Mas, chorão ia embora todos os dias. Eu sabia que tinha um dono, pois, mesmo sendo um gato maltratado, ele apresentava alguns cuidados: Quando tinha berne, ele aparecia com iodo na pele. Eu mandava para a veterinária e tratava com outras coisas. Depois ele aparecia com mercúrio em alguma ferida (de combate com outros animais) e eu fazia curativo. No dia seguinte ele aparecia com o antigo Merthiolate... Coloquei até uma plaquinha no pescoço dele, com telefone e um recado, mas fiquei com medo de ele se prender em algum arame por causa dela e desisti depois de um dia. Ele ficava o dia todo no terraço com Clarence e os filhotes, e só ia embora de noite (para seu serviço - depois vim saber...). O gato era cinza, com um rosto lindo, muito peludo, todo rajado, com um rabo que parecia um espanador, olhos de mel. Sei lá se tinha pedigree... Dizem que o "pêlo curto brasileiro" (o gato de nossas ruas) virou raça... Soube até que dariam uma grana por eles... Por minha gata e pelo Chorão eu não aceitaria nada! Cheguei a dar muitos banhos em Chorão, mesmo com medo de pegar algum treco. Ele era muito mais educado que minha gata viada! Deixava até eu espremer aquela glândula que incha no rabo deles! Quando eu descobri que Clarence não atacava este macho, mesmo que ele mijasse no meu terraço, vi que se tratava de um gato especial. Como eu me identificava com ela, entendi que esta deusa estava elegendo seu homem, e que ele, mesmo tendo todas as perebas do mundo, fazia a diferença. Isso é filosófico!!! Chorão era o escolhido! E por que o nome Chorão?... Seguinte: Ele tinha um miado diferente, mais grave do que o de minha gata – um verdadeiro macho! Quando ele desaparecia, eu ia no terceiro patamar do terraço e o chamava, mas não sabia que nome eu daria para ele. Minha filha loira deu este nome para príncipe. Lembro muito bem deste dia, pois ele respondia aos nossos chamados: Toda vez que chamávamos pelo "Chorão" ele gritava ao longe, cada vez mais alto, como um choro. Era engraçado eu chegar do trabalho, encontrar tantas coisas tristes a fazer e ainda subir no alto de minha casa para gritar pelo nome de um gato. A vizinhança não devia entender nada! Até deviam achar que ali só havia malucos, pois de dia meu pai ficava nu no terraço, em frente a uma escola, já apresentando os primeiros sinais da doença de Alzheimer. Vizinhos até o filmaram, ameaçando o processar contra atentado ao pudor... Eles não sabiam que meu pai estava ainda numa fase de não poia ainda ser considerado psiquiátrico e eu lutava para o interditar, o que é muito difícil legalmente. Meu pai fez muita coisa até ser considerado legalmente irresponsável pelos seus atos, mas isso é coisa para outras crônicas. Aqui me restrinjo aos gatos... Eu chegava de noite cansada e ainda subia para gritar: “Chorão! Chorão!!! Cadê você?!”. Eu só via as luzes dos vizinhos, muito discretos, serem acesas. Eles provavelmente pensavam que era a hora da médica doida - a rua era muito calma... Todos me conheciam desde criança e, assim, respeitavam o fato de “Dra Leila” estar num telhado gritando por um gato, pois “esta médica já tinha cuidado com sua alma de muita gente da rua, importantes ou não”. Quem não quis nunca saber, ou ignorou quem éramos lá em casa no passado, é que achou de nos rotular - não tanto por mim, mas pelo meu pai. Mas, estes, nunca chegaram perto de mim e perguntaram de seu precisava de ajuda (e eram justamente médicos...). Então, por estas e por outras é que eu gritava: “Chorão! Cadê meu gato gostoso???” - E que fossem todos pra puta que pariu! Chorão desapareceu semanas depois de um tratamento para uma infecção de pele. Resolvi subir numa escada (quase magirus) e conversar com o pessoal da rua de trás. Soube que ele era um gato guardião de um galpão de não sei do quê, e comedor de ratos... Eles sabiam que havia alguém empenhado na saúde dele, mas não imaginavam na vida de rei que ele levava durante o dia, entretanto eu imaginava a vida danada que levava à noite... Mesmo assim, eu cuidei deste gato porque era a felicidade de Clarence. Como uma mãe com uma filha... E também porque eu sou uma babaca... Chorão tinha morrido, como era de se esperar. Por eu estar uma época de poucos cuidados, até com minha gata, fazendo plantões nos Centros de Tratamentos Intensivos com minha mãe, eu não pude pensar nos gatos, nem em minha vida, sequer. Chorão morreu e minha gata ficou dormindo muitos meses. Ela só acordava pra comer ou quando eu chegava em casa pra tomar banho e trocar de roupa. Meus pacientes foram migrados para outros médicos e eu perdi toda a minha clientela por conta de uma vida, aliás, duas: meus pais. O casamento foi para o espaço, pois não existia nada além de corpo. Meus irmãos, nem se fala... O resto da família vivia seus próprios dramas. Ninguém mais do que minha gata sofreu minha ausência tanto assim. Ninguém neste mundo sentiu tanto minha falta. Todos tiveram seus rumos, suas funções e seus escapes, menos Clarence. Esta gata só entrou dentro de minha casa depois que eu a castrei, e isso demorou, acho, uns dois anos. Eu estava com o saco cheio de ver a gata grávida e ter que encontrar dono para cada filhote... Era um tal de dar remédio, banho e vedar o terraço, cuidar de plantas que seus filhos destruíam, que estava me dando nos nervos. Castrei, mas por algum tempo Chorão ainda continuou por lá, mesmo sem transar com ela... Era quase filosófico isso... Transar e procriar era uma coisa. Comer, beber, se satisfazer e pegar sol no terraço à tarde toda era outra! E eles fiavam juntos o dia todo na minha ausência. Os filhotes todos tiveram donos e eu tive o maior trabalho para os escolher!!! Os bichinhos subiam pelo meu corpo quando eu chegava. Destruíam as plantas, mas eram uma gracinha! Como eu poderia os deixar com qualquer um?! Foi seleção mesmo!!! Inclusive um conviveu com a infância de uma atleta nosso de futebol, Bernardo Show, que vai jogar daqui a pouco contra o Flamengo. No próximo capítulo finalizo a minha explicação por tanta empatia com uma gata. Leila Marinho Lage
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