Clube da Dona Menô
Dona Menô

E a constituição te protege!!!


O Grito – Edvard Munch
 

Era uma tarde no colégio, aula de literatura, em alguma época dos anos 70 (em plena ditadura militar). O diretor, um general.

A gente não sabia o por quê, mas era proibido falar sobre certas coisas. Nem se sabia que era proibido porque não sabíamos o que era proibido!

Lá estava eu, pequenina, encabulada, meio sem graça, muito tímida até pra brincar. Usava aqueles óculos enormes e me chamavam que “quatro olhos”. Meu cabelo, preso com um rabo de cavalo, esticava meu rostinho de tão puxado. Timidez era apelido - eu era mesmo uma idiotinha completa.

A gente tinha aula com professores ótimos, mas a leitura de certos livros não era permitida em sala de aula - ordens do diretor... Desta forma, os professores sugeriam textos e autores (coisa boba).

Tudo que não é permitido instiga a curiosidade e foi assim que eu conheci “Os sete minutos”, do Wallace. Não é livro sobre política. Falava sobre um crime, possivelmente induzido pela leitura de um livro. No julgamento do suspeito, vários trechos de livros foram lidos, para serem escolhidos os mais obscenos. O “vencedor” foi justamente um trecho dos provérbios de Salomão...

Hoje eu coloco aqui onde iniciou minha mudança de comportamento e me tornei mais irreverente e provocadora.

Nossa personalidade vai se formando a cada situação da vida e as pessoas, que passam por nós, nos ensinam e nos encaminham.
 
Minha mãe foi uma verdadeira educadora. Ela tinha mais experiência e cultura que muito letrado. Lia vários jornais ao dia, o jornal inteiro. Quando o jornal acabava, lia os classificados, as revistas; o que viesse ela traçava. Era só ter coisa escrita que ela lia. Daí, ela passou a ter mais informação que todo mundo em sua volta, apesar de ter só o primeiro grau escolar.
O dia da mudança... Ai, que dia fatídico pra mim!

Havia uma professora que nos ensinava sinônimos e antônimos, como se fosse uma gincana: o estudante dava uma palavra difícil e o colega tinha que dar o sentido oposto a ela, o antônimo. O bacana era conseguir uma palavra que o outro não soubesse seu sentido, não podendo dar o significado oposto.

Chegara a minha vez de lançar uma palavra. Precisava ser uma coisa que nem eu mesma sabia. Lá estava a professora perguntando: “Leila, diga uma palavra, rápido!".

Procurei na minha cabeça e larguei: “Tesão!”.

Tesão não estava em moda, quer dizer, a palavra. Eu lá sabia o que era isso?! Só falei por ser sonoro, elegante, soava bem aos meus ouvidos – por sinal, até hoje...

Quem sabia o que era, riu. A professora me olhou com aquele olhar X- 46, fulminante, como seu eu estivesse profanando uma santa.
 
Gelei, congelei, fiquei estática, quase me mijei de medo. As idiotas como eu, também não entendiam nada e ficaram boiando. Como se diz agora: viajando na maionese.

Nós não sabíamos o que era ditadura, nem repressão, mas nos sentíamos reprimidos. Engraçado... Eu me senti uma criminosa.

Aquela grande educadora se virou pra mim e fez o que justamente não deveria: “Chegue hoje perto de sua mãe e pergunte o que foi que você falou!”.

Rezei para o dia acabar e ir pra casa. O medo de chegar em casa era menor do que aqueles momentos restantes da aula. Ninguém falava nada. Eu ouvia os meninos do “oba, oba”, lá atrás, rindo baixinho.

Hoje isso nunca iria acontecer. Nunca! Estou falando de mais de 37 anos atrás.

Quando cheguei em casa, estava minha mãe no bidê se lavando. Eu sentei na privada e contei o ocorrido. Esperei a bronca, que não veio. Para minha surpresa, ela me pergunta: “Tá, mas qual é o problema? Que foi que aquela dona te respondeu?!”.

Ela se arrepiou ao saber do meu constrangimento. Se secou, me puxou pelo braço, me fez sentar à mesa e começou a desenhar (ela desenhava muito bem). Recebi naquela note uma série de explicações sobre fecundação, ovário, útero, pênis.
 
Tudo isso eu já sabia, pois minha educação foi muito aberta. Quando aparecia uma dúvida, a mesma era tirada na hora. Não havia o dia de “agora você vai saber das coisas”. Todos fomos criados em cima da realidade, sem falsos pudores, sem frescura nenhuma.

O interessante foi o desenho. Lembro até hoje: um pênis muito bem desenhado tanto em repouso, quanto em posição de sentido (a danada caprichava...).
 
Eu nem ria. Só olhava para ver até onde ela queria chegar.

A mãe disse: “Olha aqui, minha filha, tesão é uma palavra feia, mas quer dizer ereção - isso aqui que te ensinei. Só que tem uma coisa: Fala pra essa tua professora que sem tesão ninguém nasce e explica pra ela isso tudo que eu te mostrei. E vê se não fica com medo, ta bom? A CONSTITUIÇÃO TE PROTEGE !!!”.

Eu não sabia bem até onde eu deveria acatar suas recomendações, porque ela não se deu conta do meu medo e nem da situação. Ou, quem sabe, sabia bem de tudo e apostava em mim.
O retorno à escola no dia seguinte foi pra mim um marco, a tomada de uma atitude. O medo duplicou só em imaginar como me esperavam. E foi isso mesmo o que aconteceu.

Mal eu apareci na sala, atrasada, é claro, depois de respirar fundo mais de mil vezes no banheiro, a professora nem me deixou sentar: “Já sabe o que falou?!”.

A turma, a esta hora, grande conhecedora de tesão, ria debochadamente. Eu senti, de repente, uma raiva enorme. Os meus colegas rindo de mim, a professora inquisitora e um enorme quadro negro à minha frente - o meu grande aliado naquele dia.

Não tinha nada ou quase nada a perder. Eu deveria encarar aquilo com galhardia, como um soldado. Vinham as palavras de minha mãe na memória - palavra por palavra. 

Eu reproduzi os desenhos em detalhes naquele quadro, explicando todo o processo de fecundação humana, desde o ato sexual, inclusive com um imponente pênis (como era grande...) e uma simpática vulva, cheia de cabelinhos. Acho que foi o primeiro passo para eu me tornar ginecologista...

“Pois, então, professora, depois que o pênis fica ereto (porque ereção é o nome científico para o tesão), ele consegue penetrar na vagina. Daí, ele se mexe lá dentro até eliminar um líquido, o esperma, e volta a ficar mole.”

Meu coração estava na boca, minhas mãos tremiam de ódio e medo, eu suava em bicas, mas não parava de falar e desenhar, como uma locomotiva, em alto e bom som.
 
Acho que eu estava possuída mesmo... Escutava os garotos rindo baixinho para não serem repreendidos. As meninas davam gritinhos a cada explanação daquela súbita professorinha e se compadeciam com o que estava pra vir.

Depois de tudo, virei para a professora, enchendo o pulmão de ar e falei : “O nome certo não é tesão, mas a minha mãe mandou dizer pra senhora que sem tesão ninguém nasce, não é pecado!”.
 
Aproveitei que estava ferrada mesmo, voltei e disse, colocando o dedo pra cima: “E a constituição me protege!!!”.

Ela deve ter entendido, hoje eu vejo isto, como um recado sobre a liberdade de expressão ou coisa parecida. Esperei a sua reação, que foi a mais estranha pra mim. Ficou lívida, pálida e sentou na sua cadeira como um prédio desabando. Cheguei a ouvir a cadeira se arrastar pra trás com o peso do seu corpo.

Ela me mandou sentar e nunca mais, naquele dia ou em qualquer outro, se falou sobre o ocorrido - nem os meus colegas, nem professora, nem minha mãe.
 
Não sei o que aconteceu nos bastidores, mas isso foi muito bom para o meu ego.
 
Aprendi, a partir daí, a ser eu mesma. Perdi aos poucos meu medo de falar. Claro, dentro da minha condição de menina. Passei a ser líder, falava pelos cotovelos, comecei a me expressar melhor em público, diante de qualquer pessoa, sem vergonhas.

Acho que o mais importante que aprendi nestes dois dias foi ter conhecimento do que é civismo, do que é ser cidadão, ter uma identidade.

Não pensei que, um dia, o tesão iria me dar tanta coisa de bom. Creio que de todos os tesões que tive este foi o mais gratificante,
principalmente por ser o primeiro de muitos...

Leila Marinho Lage