Amarula e a Pequena Treblinka
Quero escrever sobre câncer.
Não sabia como começar. Veio, então, a história de uma amiga muito querida.
Eu tratei e trato de várias pessoas da sua família. Gerações nascendo e eu lá, sempre presente, participando de longe, nas horas especiais da vida (na maioria das vezes, na hora da dor ou da tristeza, da doença ou do sofrimento).
Num belo dia, esta amiga apareceu com um câncer de mama. No dia do resultado do laboratório, eu já esperava a positividade. Era uma noite de sexta-feira, um péssimo dia para se dar um resultado desses.
Já havia acabado o movimento do dia. Só faltava a minha amiga chegar. Dispensei a secretária. A conversa iria ser difícil e, certamente, longa.
Eu tinha que me preparar para ter uma posição de médica, não de amiga. Como separar as coisas?
Lembrei da máscara de teatro. Eu era a Persona - do latim pessoa, personalidade. Eu tinha que colocar a máscara e interpretar uma personagem.
Na teoria da personalidade definimos:
"PERSONALIDADE É A ORGANIZAÇÃO DINÂMICA DOS TRAÇOS NO INTERIOR DO EU, FORMADOS A PARTIR DOS GENES PARTICULARES QUE HERDAMOS, DAS EXISTÊNCIAS SINGULARES QUE SUPORTAMOS E DAS PERCEPÇÕES INDIVIDUAIS QUE TEMOS DO MUNDO, CAPAZES DE TORNAR CADA INDIVÍDUO ÚNICO EM SUA MANEIRA DE SER E DE DESEMPENHAR O SEU PAPEL SOCIAL".
Tá, e daí? Eu ficava na mesma. Não sabia como agir com ela. Todos os anos de experiência com doentes, íntimos ou não, não serviam para aquela hora. O melhor era ser eu mesma e não pensar no que falar ou ensaiar frases.
Ela sentou e me olhou. O olhar já me avisava o que ela esperava. Eu disse: ”É maligno e....”.
Ela baixou os olhos por um segundo e eu senti sua pele gelar. Um sorriso misterioso nos lábios e a voz baixinha : “E, aí?“.
Tracei as condutas cirúrgicas possíveis para seu tratamento. Animei-a, pois não parecia ser tão grave a situação, etc, etc, etc...
Ela, novamente, me olhou profundamente e de novo perguntou: “E aí?“.
Aquela pergunta era muito mais do que uma dúvida. Ela estava me avisando o que acontecia no seu interior - surpresa, medo, insegurança. Drummond diria: ”E agora, José?”.
O caminho da vida foi interrompido por um outro caminho e lembrava que nossos caminhos não podem ser traçados como queremos. É preciso ter coragem, muita coragem para enfrentar uma coisa assim. Vai depender da nossa personalidade.
Eu sabia muito bem o que sentia porque já tive um câncer na tireóide. Talvez, por isso, agi naturalmente com ela:
- “Já fechei as portas do consultório e tenho um licor de Amarula aqui que ganhei hoje. Topas?”.
- “Você sabe que eu não bebo”, ela disse.
- “Por isso mesmo. Assim, pega melhor”, retruquei, e enchi um copo duplo de plástico pra ela.
A cada explanação da minha futura conduta, ela engolia aquele licor como um copo de refrigerante.
A certa hora estávamos rindo e fazendo piadas.
O tempo todo eu me lembrava do dia em que eu soube do meu resultado. Só que não sou exemplo pra ninguém - minha cabeça roda diferente, sei lá.
Eu estava no celular, saindo pra trabalhar, enquanto discutia com o patologista sobre a origem celular do câncer. Havia um motivo em especial: tenho geneticamente maior probabilidade de evoluir com vários cânceres endócrinos, tal qual minha mãe. Eu temia ser um dos mais graves, o medular, como ela apresentou.
Automaticamente, no dia do meu resultado, minha cabeça começou a fazer os planos para o futuro - como eu faria com as doentes (caso eu caísse numa cama): como eu faria para cuidar de minha mãe doente: como eu resolveria meus problemas financeiros: como ia ficar a família, essas coisas. Até testamento eu fiz... Trágico? Não: precavida.
A minha cirurgia foi ótima. Em nenhum momento eu sentia que aquilo me mataria. A gente sente isso. Pelo menos, eu sinto.
Só que, no meu caso, eu não tinha ninguém para me dar um licorzinho. Estava sozinha, mesmo ao lado de muita gente. Preferi omitir da maioria das pessoas conhecidas o que acontecia na minha vida pessoal.
O pior foi o tratamento complementar. Não que fosse sofrido, de jeito nenhum. Teria apenas que ficar três dias num quarto fechado, protegido da irradiação e fazer absolutamente nada naqueles dias. Ficaria apenas sozinha, calada, atualizando agendas, vendo televisão, dormindo.
E lá fui para a clínica me internar. Aí, sim, começou o campo de concentração.
Eu me internei numa verdadeira prisão, com direito a tortura psicológica – A pequena Treblinka.
Na época, o telefone celular era aquele tijolão, que não pegava de jeito nenhum dentro daquelas paredes de chumbo. Televisão? A que custo deixaram entrar...
Deram pra mim um copinho de iodo radioativo, sem graça, sem gosto de licor de Amarula, nem nada e saíram literalmente fugidos do meu quarto. Avisaram que se eu precisasse de alguma coisa, era para tocar uma campainha que estava perto de uma porta de vidro duplamente reforçado. Não havia outro tipo de comunicação. Eu teria que me levantar, ir até aquela porta e chamar alguém.
Tudo bem, ora. Eu não iria precisar de nada mesmo! Era só ficar de papo pro ar por três dias e pensar, pensar, pensar...
Foi o meu erro. As copeiras não entravam, davam a comida pela porta semi aberta e me mandavam não abrir a boca de jeito nenhum, para não eliminar irradiação em cima delas. O prato de comida, que entrava, não saía mais de lá. Apenas se acumulavam, junto com formigas radioativas, que passeavam ao redor deles.
Ninguém usava capote protetor e não chegavam dentro do quarto. Em nenhum momento apareceu médico ou enfermeiro para me ver ou falar comigo.
As horas eram intermináveis, mas eu não estava nem aí. Não ligava. Dei uma de boazinha. Só que toda vez que dou uma de delicada, eu me ferro.
Não lembro qual foi o dia, nem a hora, pois a janela não mostrava a rua (nem era uma janela e, sim, um basculante lá em cima), mas sei que comecei a passar mal. Talvez por estar sem nenhum hormônio tireoideano no corpo, a minha pressão arterial baixou e eu fiquei muito tonta. Até hoje não sei se foi um distúrbio neuro-vegetativo, um distúrbio emocional ou hipotensão mesmo. A única coisa que sei é que eu estava precisando de ajuda profissional!
A campainha foi tocada por três horas sem parar. Existia um interfone no lado da cama, que não funcionava ou estava desligado. Eu conseguia ver, através do vidro, uma enfermeira dormindo num corredor – o sono dos justos....
Então, como era de se esperar, passei do nervoso ao pânico total. Não pensei em gritar para não incomodar possíveis doentes, se é que alguém me ouviria.
Daí, eu peguei aquele celular-tijolão e tentei ligar para a recepção, mas não dava sinal. Depois de muitas tentativas, consegui ligar para minha casa, com medo de assustar todo mundo.
A pessoa, com quem eu mais poderia contar naquela hora, atendeu e simplesmente falou que iria falar com o plantonista para me acudir e que não podia ir ao hospital por estar tarde demais, por ser perigoso o local e não ter estacionamento, etc, etc... Mas, isso é uma outra história.
Eu me achei a pior das mulheres. Parecia que eu era uma psicopata, esquecida dentro de uma cela para criminosos irremediáveis.
Os sintomas passaram espontaneamente, depois que deitei e comecei a respirar e me controlar, pedindo a Deus para me dar forças e me acalmar (Os astronautas devem entender disso).
Ninguém apareceu ao longo daqueles três dias - apenas as copeiras, extremamente mal educadas. Eu pedia, brigava, reclamava e nada, nada. Elas tinham medo de se contaminarem e não havia proteção para os funcionários.
No dia de abrirem as portas, apareceu o dono da clínica, todo sorridente e um atual ex-parente.
Engraçado... Minha reação foi muito diferente da que eu costumaria ter. A princípio, eu virei uma onça e queria atacar todo mundo. Depois, vendo a porta aberta, saí rapidamente dali, parei na porta daquele lugar e fiquei olhando os carros passarem. Pegamos um táxi, pedi para não passar por túneis, cheguei em casa e tomei whisky.
Eu ainda tinha tanta coisa para enfrentar, tantos problemas ao mesmo tempo, que me conformei em sair da “Polônia tupiniquim” e estar viva para continuar meu caminho difícil, mas, agora, livre para minhas decisões, para minhas lutas.
Eu me arrependo de nunca ter processado ou alertado sobre o que acontecia naquela jaula, mas estou falando agora.
Por ser um lugar especializado nesse tratamento e por existirem poucos com este tratamento, por ter outras coisas para fazer na vida, por estar sob forte pressão emocional, apenas deixei passar e ignorei.
Quem entende de irradiação sabe o que acontece nesses lugares e os erros que cometeram. Todo mundo sabia, todo mundo via, ninguém falava nada.
Eu não passei por sofrimento físico nenhum. Não tive dor e nada aconteceu demais no corpo, mas senti um pouquinho do que eu vejo todo dia nas minhas doentes graves, nas mazelas do mundo.
A propósito, minha amiga hoje está curada, linda, gostosona.
A Pequena Treblinka ainda está lá, talvez mais maquiada...
Leila Marinho Lage
Rio, 2006
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