Intimidade X Espontaneidade
Tenho um número maior de clientes de meia idade ou bem idosas atualmente. Por vários motivos:
Primeiro: As mulheres estão se conscientizando de que o exame preventivo é necessário em qualquer idade, inclusive nas mais velhas. A prevenção do câncer ginecológico se impõe.
Com a maior expectativa de sobrevida e a melhor qualidade de vida, as mulheres passam a pensar em sua saúde e não apenas na aparência e na família.
Segundo: Os tabus em relação ao exame ginecológico e ao médico que o realiza, estão se quebrando e elas vêem a consulta como uma necessidade e uma rotina. Hoje não se associa mais a visita ao ginecologista somente para aquelas mulheres com vida sexual ativa ou para as que estão sentindo alguma coisa.
O ginecologista tem a mesma função que o odontologista – não somente com uma visão curativa ou diagnóstica, mas profilática.
Terceiro: As pessoas passam a ver no médico o caminho para se falar sobre assuntos que no dia a dia não se consegue abordar com naturalidade.
Quarto: Com a minha maturidade, elas passam a me ver como uma pessoa confiável, com condições de as entender.
Acontece que, com este meu jeito meio irreverente de ser, graças a Deus, faço uma coleção de pessoas também irreverentes, que, ao contrário do que se espera, deveriam ter um comportamento cerimonial e sério, levando em conta a idade avançada. No entanto, sentem-se em casa e se revelam. Como se eu fosse da família ou uma amiga íntima.
Não parei para analisar freudianamente, ou seja lá como o quê. As coisas acontecem espontaneamente e a gente vai reagindo conforme a situação. Bem ou mal? Depende do espírito. O jeito é ser sincero e aberto, ter paciência e honestidade ao se conduzir um diálogo ou uma conduta.
Não apenas ouvir, mas compartilhar. É isso que as pessoas procuram: trocas de sentimentos, compreensão, aprendizado , amizade, apoio. Isso que transcende um simples exame físico.
O importante é saber até onde vão nossas condições para se abordar um assunto ou a forma como o abordamos. Desta forma, deixo para a paciente tomar a iniciativa daqueles minutos seguintes que definirão nosso diálogo.
Ontem aconteceu outro diálogo doido entre eu e uma cliente idosa e passo agora este relato maluco:
Cena: No consultório.
Personagens: A médica e uma dona de casa portuguesa, uns 65 anos.
Situação: Trocando a roupa para o exame ginecológico
Ela me olha o tempo todo de lado, desconfiada e eu com o lençol na mão, para a cobrir. Procuro olhar para o lado, tentando ser natural. Ela se chega para a posição tradicional.
- “Já vai começar a tortura. Ta tudo apertadinho aí. Vai com cuidado...”.
Tento ficar séria - ainda não sabia sua real apreensão com o exame.
- “Calma, sei fazer isso de olhos fechados”.
- “Prefiro que tu faças de olhos abertos...”.
- “Quem foi que te colocou medo?”.
- “Não me colocaram medo. Antes de começar a vir aqui, me machucavam.
Fiquei traumatizada. Não tem uma forma melhor, mais moderna para fazer isso?”.
A esta hora, eu já estava rasgando o lençol. Passava o tempo e ela não se posicionava devidamente.
Eu ameacei: “Se você não ficar na ponta eu vou te puxar na marra. É preciso examinar. Você sabe disso. Faz uma pose aí”.
Ela, fingindo-se de obediente: “Está bom, está bom... Podes tirar o retrato”.
Acendi o foco para melhor visualização: “Atenção!”.
E ouvi a pergunta: “Fotogênica?...”.
Aí, vi que ela tentava descontrair a coisa, para relaxar. Compenetrada, eu coloquei o espéculo (o que chamam de bico de pato), alertando : “Olha o passarinho...Sorria!”.
A senhora, sem ao menos rir, olhando para o teto, distraída disse: “Já pensastes se a gente tivesse a foto “dela” na carteira de identidade, ao invés do nosso rosto? Eu teria que pintar os pentelhos de preto” .
Enquanto mexia e futucava, eu conmentava: “Bem, o problema ia ser provar que aquela era a tua...”.
Ela, contorcendo o canto da boca : “Mostrar não seria o problema. O problema seria provar como foi que ela mudou tanto. Além de murcha, tá pendurada”.
Eu: “Finalmente acabou”.
Ela: "Mas, já?! Nem senti!”.
Eu: “Viu? Melhor que no dentista!”.
Ela: “Ah, isso é mesmo, pelo menos não tem aparelhindo fazendo barulho”.
Eu: “No seu caso, não, mas as profissões são muito parecidas - curetamos, extraímos e perfuramos também, além de outras coisas”.
Ela: “Sem contar que são bocas parecidas...”.
Eu: “Graças a Deus esta daqui não fala”.
Ela ria sem parar.
Eu: “É melhor a gente parar de rir, porque eu não consigo examinar direito. A sua vagina está cuspindo o especulo para fora”.
Ela: “Ainda bem que ela não fica resfriada, nem tosse.
A secretária se contorcia para não rir também. Eu a proíbo de rir, de fazer comentários ou de olhar para a paciente, ou seja, um soldado.
Acabada a consulta, nós nos despedimos na sala de espera. Ela não parava de rir. Não sei se de nervoso ou se ainda estava com os efeitos das piadas.
Sua amiga, que a esperava na sala, não entendia nada. E, foi assim, deixando seus medos pra trás, que aquela senhora foi embora satisfeita.
Como fiquei? Ora, tentando me refazer e passar para o próximo caso, que poderia ser uma coisa séria, até dramática.
Nos seus diversos valores culturais ou sociais, é comum ver na mulher brasileira (e na imigrante, que é brasileira também) uma atitude de bom humor, mesmo em ocasiões desconfortáveis. E está aí a importância do médico para lhe deixar à vontade.
Intimidade e espontaneidade, estas foram as palavras do dia.
Leila Marinho Lage
Rio, 2006
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