Empty Garden Já me pediram para eu falar sobre os partos que já fiz e os “causos” que transcorreram nestes momentos. Engraçado, mas eu tento fugir da situação “médica” justamente por me recriminarem por ser profissional demais, até nas horas de lazer e, talvez por isso, procuro não misturar as bolas quando faço crônicas. Quando muito, falo em algumas situações exóticas ou que têm a ver com meu momento. O difícil é separar a médica da mulher, pois certas situações estão arraigadas ao meu passado profissional e pessoal ao mesmo tempo. Assim, eu começo a dissertar como foi o dia de hoje. Antes, eu me transporto a 25 anos atrás, em um centro cirúrgico: Eu tinha uns dois anos de formada ou quase. Já tinha feito dezenas de partos, talvez centenas, não lembro. Quando a gente é recém-formada entra numa de fazer partos adoidado e fazemos plantões, emendamos dias, tentamos aprender ao máximo. Ao tratarmos de pacientes particulares a responsabilidade é maior ainda. Nesta hora estamos sozinhos. Eu já era médica de um hospital público, mas montava meu consultório. Havia uma moça que estudava comigo em um curso de inglês, Mônica. Ela ficou grávida e decidiu que eu seria sua médica. Seu pré-natal chegou a ser feito na sala de espera, pois não tinham entregado a minha mesa nem a cadeira. No dia do nascimento de seu primeiro filho, Macário, tudo era perfeito – aparentemente... Eu tinha mania de levar rádio para ouvir músicas. Mônica estava nervosa, obviamente, mas cantarolou o tempo todo uma música de Elton Jhon (Empty Garden). Por incrível que possa parecer, eu não estava nervosa, mas apreensiva: seria a primeira paciente totalmente sob minha responsabilidade. Neste dia nasceu Macarinho, que hoje é casado com Aline, uma linda moça com olhos parecidos com os de minha mãe. Anos depois veio Diogo, que hoje é casado com Janine. Eles tiveram um bebê que nasceu há um mês, Tales. O nascimento de Diogo foi extremamente difícil. Neste, sim, eu fiquei muito nervosa. Mônica já não era uma simples paciente, mas uma amiga, que participava das minhas palestras, que frequentava minha casa, que jantava fora comigo. É terrível ter uma ligação assim quando a vida dessa pessoa está nas nossas mãos. Seu último parto foi de Mariana. Com ela tenho maior contato, porém, contato mesmo eu sempre tive com a mãe e Macário, um cara bom demais, bom pai, trabalhador incansável, marido leal. A crônica parece meio sem gracinha, né? Deve ser, dito assim, resumidamente. Durante estes anos todos pouco participei da vida desta família, apesar de eles jamais me esquecerem. Muita coisa aconteceu neste caminho e este caminho veio parar hoje, neste domingo, para que nós avaliássemos esta rota. Foi num almoço na casa deles que a gente colocou nossos passos em dia. Por falar em passos, assim que eu cheguei resolveram ir ao mercado para compras de última hora e fui junto. Só não sabia que íamos a pé e eu teria que acompanhar Mariana e seu namorado Duda, dois jovens grandalhões. Bem, eu fiz minha caminhada forçada do dia. Cada passo deles era três meus. O bairro onde moram chove muito. É incomum num dia de frio aquela terra não chover. Não que seja longe, é bem perto de minha casa, mas o local é rodeado por morros, o que faz com que a gente saiba quando vai mudar o tempo só em olhar para o céu de lá. E choveu justamente na hora de irmos às compras. Já não bastava minha correria, comecei a me molhar, e meu cabelo carapinha empenou mais ainda... Ah, assim era demais! Resolvi que voltaríamos de táxi, ou melhor, num carro irregular, destes bem vagabundos, que fica de plantão para os desesperados casuais. O almoço era strogonoff de camarão, aipim frito, arroz e salada. Só de sentir o cheiro dava água na boca. Godofredo, o gato, sabia disso melhor do que a gente. Godô ainda não sabe que seu nome é este. Eu até acho que seu nome devia ser Rex, uma vez que estão cuidando dele como um cãozinho, preso numa coleira para não fugir, até que seja castrado. Ele está até meio viadinho, sabiam? Em certa hora ele foi solto para dar uma passeadinha e, pasmem, saltitou que nem Bambi na floresta... Tudo bem, a natureza vai definir... Mônica recordou fatos que eu jamais tinha lembrado anteriormente: coisas de minha casa, detalhes sobre meus animais e minha família, que se perderam no tempo e voltaram repentinamente naquela cozinha. A gente se abraçou, tentando engolir as lágrimas que estavam traiçoeiras nos nossos olhos. Não dava tempo para papos longos, tudo era muito dinâmico. O pessoal conversava animadamente, falávamos besteiras, ríamos muito. Mônica olhou para Tales, o mais novo componente, e dizia que não conseguia ainda se acostumar com o fato de ser avó. Neste momento lembramos da vez em que um de seus filhos estava com prisão de ventre. Nós usamos supositório de glicerina infantil no bebê. Quem tem filho sabe que é para introduzir um pouquinho e retirar. Eu fui a escolhida para tal procedimento, recebendo como dádiva de Deus a repercussão desta intervenção diretamente, em jato, na minha roupa branca de trabalho... Eu e ela ficamos no quarto enquanto a turma fazia algazarra na sala. Mônica olhou através da porta e disse: “Eu adoro esta bagunça na minha casa...”. Pensei, não disse, mas agora falo: Mônica, seu jardim nunca ficou vazio, como na música. Você sempre teve muitas flores à sua volta e soube adubar. Você tocou a portas e muita gente respondeu. Quando você me ligou para perguntar se eu cheguei bem e desejou que anjos dormissem comigo, saiba que eles estiveram o tempo todo conosco. E, menina, não deu pra aguentar: aquelas lágrimas que rolaram, então, ao telefone também foram as minhas. Leila Marinho Lage |