Clube da Dona Menô
Dona Menô

Os olhos azuis e o buraco

Tudo levava a crer que meu dia seria mais um dia daqueles: sem graça, sem sentido, esperando a hora de acabar o expediente.

Acontece que certas pessoas passam por nossas vidas sem saberem o bem que trazem. Algumas pessoas, atendidas por mim ao longo de muitos anos, de repente, se revelam, ou melhor, eu as vejo diferentes.

Começou com uma senhora, que leva sempre sua mãe também para eu examinar. Eu admiro seu cuidado com esta mãe e admiro seu porte elegante, sua altivez. Não por ter sofisticação, mas por apresentar a altura de suas dores ultrapassadas.
 
O bonitinho é na hora de ir embora. Por anos a fio ela me beija as costas das mãos ao se despedir. Em retribuição, eu faço o mesmo gesto.

Fico pensando o por quê disso. Pode ser um hábito, mas, para mim, é uma coisa inusitada. Se fosse apenas uma vez, seria curioso, mas sempre?!

Este cumprimento, ao contrário do que parece, não é um ato de subserviência, bajulação. Mais me parece um ato de respeito e admiração e, ao mesmo tempo, de proteção. É como quem diz: ”Eu estou aqui e te protejo. Eu gosto de ti, te entendo e estou a teu lado”. Uma atitude de proteção, carinho, concordância, empatia.

Aí, fiquei mais “zen”. O dia me pareceu começar naquela hora e me senti produtiva, com uma razão especial para estar ali, naquele momento, fazendo exatamente o que deveria fazer. O que cansava não importava mais e a gente começa a “pegar” energias positivas de quem tratamos.

Passamos a ser “tratados” também, porque os pacientes deixam mil palavras em uma expressão, num movimento, numa atitude. Eles nos ensinam com suas vidas e nos fazem melhores – não por sermos médicos, mas por termos a oportunidade de conviver com diversas verdades e lhes oferecer o nosso lado bom.

Então, entra a próxima: uma história de tragédias na vida, muitas perdas dramáticas. Seus olhos, de um azul celestial, impressiona.
Provavelmente na juventude foi de “arrasar quarteirão”, como se dizia. Tipo “Garota de Ipanema”, uns setenta anos ou mais, não lembro.

O que mais me impressiona em sua fisionomia é o olhar, mais que a cor dos olhos. Quase não ri, mas seu olhar fala por ela. Sua alegria de antes, escondida por perdas de pessoas amadas, tudo isso é substituído pelos olhos que amenizam qualquer desencanto na vida.

Depois do exame de rotina, ela relatou que tossia e engasgava com facilidade. Ela deveria procurar que especialista?

Expliquei, dentre as várias causas, que o melhor médico, a princípio, seria um  otorrinolaringologista (médico de ouvido, nariz e garganta).

Ela ficou intrigada e eu expliquei que poderia ser alguma coisa alérgica, nos seios da face, ou mesmo, um problema na laringe. Tive o maior cuidado em justificar  o começo da investigação por este tipo de especialista.
 
Enquanto me desdobrava em esforços para ser o mais clara possível, aqueles olhinhos sorridentes enganavam os lábios fechados e o rosto sério, e ela saiu com a seguinte pergunta: “Mas, por que hoje existe médico para cada buraco que a gente tem? Antes as  pessoas procuravam um só médico para todos os seus buracos!”.

Entrei na dança e não deixei por menos: “A senhora há de convir que temos muitos buracos. As mulheres até mais que os homens. Achar um médico para tratar de todos bem é difícil!”.

Não sei se ela se convenceu com minha resposta ou se achou que eu estava apenas brincando. Encaminhei esta paciente para um colega e ela saiu satisfeita por eu ter tido atenção com o seu “buraco”, tão relegado a segundo plano.

Para deixar sua marca, ao sair pela porta, olhou como uma menina levada e falou: “Bem, pelo menos, o meu buraco, que a senhora trata, está muito bem, né?”.

Dá pra falar mais? Depois falam que eu é que sou engraçada... Esta mulher tinha idade para ser minha mãe, olhos de criança e um semblante de tristeza guardada, mas levava toda a dignidade para poder dizer o que pensava e ser entendida, mesmo brincando.

Se eu sou séria, falam que eu estou com algum problema ou estou deprimida; se eu brinco, sou maluquinha. Talvez eu  tenha perdido a fórmula mágica de ser neutra nas minhas expressões ou, sem querer, reflita nas minhas palavras e atitudes a carga de emoções pelas quais passo todos os dias.

Aquela senhora não queria ser séria ou alegre. Simplesmente me viu como uma amiga, como se eu estivesse na sua casa, tomando um chazinho.

Hoje aprendi com estas duas mulheres. Amanhã  vou desaprender de novo até o próximo beijo ou o próximo buraco...

Leila Marinho Lage
Janeiro de 2006