Theatro Municipal em Sete Atos
Nós, cariocas, não valorizamos nossa cultura como devíamos. Talvez seja um pouco de desinteresse do povo, mas, na maioria das vezes, é porque a mídia (digo a mídia que alcança o povão) não tem o menor interesse de instruir nossa sociedade.
Existem dezenas de programas muito baratos, principalmente durante a semana, em vários setores culturais, como peças de teatro, música e dança. Até mesmo aos sábados e domingos encontramos muita coisa boa por aí. Pena que não divulguem em massa. No dia 8 de outubro de 2008 eu fui assistir a um evento muito bonito: Grandes Mestres da Música - Concerto em Homenagem a Johannes Brahms, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, apresentado pela orquestra Cia Bachiana Brasileira, regida pelo maestro Ricardo Rocha.
As obras de Brahms executadas foram o Concerto para Violino e Orquestra, ré maior, opus 77, com solo do violinista convidado Daniel Guedes, e a Sinfonia nº 1, dó menor, opus 68. Preço popularíssimo, apesar de eu ter sido convidada. Até aqui vão pensar: "Ela é entendida no assunto...". Gosto de música clássica, mas não entendo de música clássica. Vamos dizer que eu esteja no mesmo patamar de um norte-americano com a Bossa Nova... Conheço a Cia Bachiana Brasileira, que é composta de orquestra e coro, mas naquele dia só havia a orquestra, o que me fez prestar mais atenção aos músicos. 1 - Allegro non tropo
O “Conserto”
Lá estava eu, cansada de trabalhar, um frio horroroso, chovendo, no meio da semana, à noite, indo para o teatro, que é numa área horrível de trânsito: centro da cidade. Mas, tudo bem... Era para assistir a um espetáculo raro e, principalmente, porque era a última apresentação no teatro antes de este entrar em obras. E eu nunca tinha ido ao Theatro Municipal! Só por fora... O teatro existe desde 1909. É lindo, mas realmente precisa de obras no teto, no acabamento, nas torneiras do banheiro que estão ruinzinhas, ruinzinhas... Mas é uma arquitetura maravilhosa, toda em estilo francês. Aquelas escadarias lindas, o teto, os rococós, o corrimão, o terraço, todo ele é muito belo, belíssimo! O palco me decepcionou um pouco. Pensei que era maior... Talvez se eu não estivesse na turma do gargarejo (convite é convite, né?...), mas, sim, lá em cima, na parte dos lustres e ilustres, eu pudesse ter outra idéia. Mesmo assim, do jeito que estava, estava bom, pois eu poderia sentir os artistas em sua plenitude. Eu já fui pra lá meio que pitimbada: meu pé, desde que eu caí no consultório (leiam "Osso duro de roer", em Meus Devaneios), não está sendo mais o mesmo. Eu tinha acabado de sair da maior gripe que já tive e ainda remanescia uma rinite básica. Minha secretária foi comigo para que eu não desistisse: ela topa qualquer parada. Achei bom, porque ter uma amiga que é ao mesmo tempo uma agenda humana e um “guia para cegos”, faz qualquer um ter ânimo... Comecei a ter uma coisa estupidamente rara: dor na gengiva. Uma infernal dor na gengiva. Eu me apavorei, pois se fosse de causa dentária, eu estaria perdida na noite do Rio de Janeiro. Sim, óbvio... Ninguém me atenderia num hospital da mesma forma que num consultório. Nesse caso, o que fariam comigo? Dor de dente é uma das piores dores que existe! Começou o diálogo: -"Dejê, tem aí o telefone da Mairá??? Ela está tratando dente com alguém bom aqui por perto. -“Você vai ao dentista a esta hora?”. -“Não! Nem quero pensar nisto!”. -“Ah, bom... Porque eu quero ouvir Brahms...”. -“Eu quero é saber o celular do dentista. Se na hora lá do Brahms a coisa apertar, tiro o cara de casa!”. Liguei para Mairá, minha amiga e intérprete da Dona Menô em minhas palestras: -“Bicho, to com uma puta dor no dente – ou gengiva, nem sei...”. -“Bicho, vai lá no meu dentista. Ele é maneiro pacas...”. -“Bicho, ele é maneiro na hora de cobrar?...”. -“Bicho, podes crer...”. 2 - Adágio
O Concerto Assim sendo, fiquei mais tranquila. A dor na gengiva só passou depois de um café MARAVILHOSO lá no terraço do teatro. Também, num lugar lindo como aqueles, aonde passaram milhares de pessoas importantes e cultas, os melhores artistas, com aquele corrimão que eu tocava (aquelas bolas de mármore lindas), no qual um monte de gente fina fez o mesmo, eu tinha que ficar boa. Eu estava no meu lugar. Só poderei voltar lá no ano que vem, quando as obras acabarem. Obviamente outro tipo de público estava lá, assim como eu, que tinha caído de paraquedas. Mas, peraí, até o cônsul geral da Alemanha no Rio de Janeiro, Hermann Erath, estava lá. O espetáculo teve apoio do consulado e patrocínio da Merck S.A. E eu sentei ao lado de um maestro – só podia ser maestro, porque ele mexeu a cabeça e as mãos o tempo todo durante as apresentação - a não ser que tivesse um tique nervoso.
Tentei tirar sutilmente umas fotos, sem que percebessem, pois era proibido. A sutileza foi tanta que eu me dobrei em duas na hora de fotografar o teto. A mulher que sentou à minha frente começou a me olhar de lado. Eu nem dei bola... Afinal, a única coisa que podia tê-la incomodado era meu joelho em sua bunda, até aquele momento... Quando começou a apresentação, comecei a me arrepiar todinha. Era impossível não mover a cabeça enquanto eu percebia a evolução dos violinos, dos violoncelos, até mesmo do trombone lá de trás. E foi aí que assisti a um pequeno deus. Um deusinho, jovem, bonito, que mais parecia filho da gente, mas que tocava violino como um deus - o solista convidado Daniel Guedes, que, apesar da idade, é até professor.
Com ele o maestro não criava farofa, não... Ficava quietinho, de braços baixos. O maior respeito, cara...
3 - Allegro giocoso, ma non troppo vivace Deu a maior lombeira, fiquei meio bodeada, com sono. O maestro é que me acordou. Também, pudera, a abotoadura dele tinha voado, a batuta cortou o papel da pauta, o suor espirrava para todos os lados e eu ouvia a sua rápida respiração a cada movimento, dizendo aos músicos quando entrar.
E não era por causa do calor, não, porque lá dentro estava tão congelante quanto na rua. Devia ser o desgaste físico, além da emoção e responsabilidade. Qualquer coceira no nariz na hora errada faria com que o contrabaixo fizesse Zum!... Eu sabia quando a coisa ia ganhar monta por causa do maestro. Não sabia se olhava para os músicos ou para ele, um show à parte. Fico imaginando o que seria de uma orquestra enorme como aquela tocando sem regente. Ia virar um samba de crioulo doido... Deve ser muito difícil aprender cada movimento de mãos de um regente, além de ele ter que ter ouvidos, muitos ouvidos, para perceber quem entra antes, quem entra depois, quem chega junto... Uma verdadeira orgia musical. O maestro Ricardo Rocha é autor do livro “Regência, uma arte complexa”, editado em 2004, livro que é adotado nas escolas de música. Este regente também atua na Alemanha e foi o responsável pela fundação da Sociedade Musical Bachiana Brasileira, em 1993, a qual dirige até hoje. Eu já assisti à orquestra duas vezes ao vivo, mas não consigo falar com ele. Ele parece ser muito simpático e bastante acessível. Um dia ainda consigo uma fotinho de nós dois para o site... 4 - Allegro
Vista grossa, ouvido mouco Eu queria saber o que Brahmns pensava ou queria dizer com cada acorde, mas, como não entendo de música e não havia roteiro, tentei apreciar apenas o que estava à minha volta. Música é isso, não é?... Bem que poderia haver um telão lá atrás dizendo: “Agora Brahms está feliz”; “Brahms se aborreceu com a faxineira”; “Brahms está com sono e quer dormir”; "Brahms bebeu”; “Brahms está apaixonado”. Eu não entendo nada de música... A única alma salvadora para minhas dúvidas era o maestro, que me indicava o que ia acontecer. A certa hora eu entendi perfeitamente o que ele queria e eu até quis tocar, mesmo que fosse um apito. Comecei a devanear sobre minha vida do dia-a-dia. Perguntei à minha secretária algo tipo: “Conseguiu abrir o e-mail?...”. Foram segundos o tempo que demorou aquela pergunta. Vamos cronometrar: Você (1 segundo) consegiu (1,5 s) abrir (1 s) o e-mail? (1,5s). Cinco segundos apenas e a dona que estava sentada à minha frente olhou zangada pra trás e fez: “PSIU!!!”. Eu já tinha visto um olhar parecido com aquele no manicômio judiciário onde trabalhei. Ela mais parecia aquelas professoras primárias da década de 70 no colégio militar no qual estudei. Ah, não! Aquilo não ia ficar assim! Minha mãe me ensinou a enfrentar a ditadura. Não era aquela dona de cabelo armado que ia me calar! Disse para minha secretária: -“Vou dar um teco nesta dona...”. -“Calma, Leila, não deixe Dona Menô incorporar agora, pelo amor de Deus!” - disse ela, já se ajeitando na cadeira e me embarreirando... Acatei. Hoje em dia eu estou acatando todo mundo... Acato banco, acato as contas, acato o sistema de saúde... Por que não acatar, ao invés de atacar, a recomendação tão justa de minha auxiliar?... E eu tinha que respeitar os músicos, os quais nem podiam perceber o balbuciar de minhas silenciosas palavras. Eu tinha feito um trabalho sobre silvicultura pra filha de minha secretária. Isso durou um domingo inteiro. Nada mais justo que numa quarta-feira eu perguntasse como ficou, uma vez que a menina não podia voltar pra casa desde então, por causa da morte de um traficante na área ... Coisas que outro país não poderá entender... 5 - Andante Sostenuto “Que bom nada! Não é você que vai ter que encarar aquela dona que eu acabei de dar um teco!”. 6 - Um poco Allegreto e grazioso
Deuses e anjos Bem, quando eu voltei, vi que a mulher mexia em seu cabelo armado o tempo todo, pra dar um jeito. Nem olhou mais pra trás...
Os violinistas, principalmente as mulheres, pareciam ter vindo do céu, anjos. Eu não consegui acreditar que o som vinha de seus instrumentos, de tão suave que era... Uma coisa que me chamou a atenção foi uma violoncelista à direita. Ela ficava exatamente atrás de outro violoncelista, que tocava como uma fada, apesar de ter biotipo de um boxista. Os dois tocavam MUITO! Para ser mais exata, todos tocavam muito bem, apesar de eu não saber o que é tocar mal. Pelo menos me tocaram.
Pode ser heresia, mas lembrei de Susan Sarandon em “Bruxas de Eastwick”. Sempre gostei de violoncelo e sempre quis saber tocar como Susan Sarandon naquele filme... Aquela artista tocava como eu... Sim, como eu – num centro cirúrgico! Ela tinha uma expressão séria. Parecia que nem estava lá; exercia naquele momento a maior função de responsabilidade do mundo e não podia sorrir, nem desviar o olhar. Seu olhar não procurava a pauta, nem mesmo o regente. Estava no nada. Seus ouvidos “olhavam” por ela e seus reflexos faziam seu trabalho. Amei aquela mulher à primeira vista. Deveriam fazer um solo com ela...
7 - Adagio Piu andante - Allegro non troppo, ma com brio - Piu Allegro
Etiqueta 10. Educação zero
Subitamente tudo ficou mais intenso. O maestro estava cada vez mais animado, apesar de eu achar que a orquestra nessa hora não teve o mesmo feeling. Era pra turma botar pra quebrar.
O músico do tímpano (um tambor), que estava escondidinho, fazia meu coração bater no mesmo compasso. Pela hora, devia estar no final. De vez em quando eles paravam e todos aplaudiam. Parecia missa - eu jamais sei quando ajoelhar, sentar ou ficar em pé. Odeio isso! Como Jô Soares recomenda que aplaudamos só no final, fiquei na minha, mas a plateia estava animadona... Isso deve ser o must para o artista... Ou será que não?... Bem, considerando que, se no momento que estou operando uma pessoa, o meu anestesista disser para mim que eu preciso correr porque o paciente está nas últimas (e eu corro), não acredito que um músico fique paralisado com palmas fora de hora... Mas não é que aconteceu o absurdo do dia?... Gente, um cara que estava na platéia, provavelmente um desses que vai a concertos e entende mais de concerto do que de conserto (das diferenças sociais e intelectuais), gritou, protestando contra quem aplaudia. Deu vontade de ir pra galera... Caramba! Se a orquestra estivesse no Jardim Botânico, estariam todos felizes, ouvindo a população louvar em alto e bom som, atravessando Brahms... Tenho certeza que os músicos gostariam de ser reconhecidos pelo povo no geral, mais do que por uma casta esnobe que já perdeu o trono e só falta empacotar. Os músicos não ganham o suficiente para se dedicarem exclusivamente à arte. Cada um ali, com raras exceções, é um batalhador, normalzinho como nós todos. Teve oportunidade de estudar e se destacar na música, mas entende perfeitamente sua sociedade. Lá ninguém estava fazendo zona. Estavam apenas celebrando a alegria e o que assistiam. Tinha que aparecer um “apreciador da boa música”, porém pouco apreciador da boa educação, um imbecil de galocha, para atormentar o público que estava enfrentando aquela tempestade somente para ouvir Brahms ou mesmo curtir uma diferente. Eu sabia o que estava acontecendo, mas não sabia quais as palavras que foram ditas, pois eu estava ao lado do ar refrigerado e comecei a tossir e espirrar. Preferi tirar meu casaco, ficar com frio e colocar o mesmo na minha boca para abafar o som. O amigo, que me convidou, até agora não sabe bem o que me aconteceu e por que eu não fui ao seu encontro ao final da apresentação. Vai saber agora... Minha secretária perguntou se eu tinha ouvido o que disseram na plateia. Enquanto eu escondia o rosto no casaco, tentava saber: -“O que foi, po? COF! SNIF!". Olhem só que coisa linda a resposta: -“Disseram: “Silêncio, mulambada!!!””. Aí é que me deu acesso de tosse. Ainda bem que estava acabando. O maestro já tinha perdido as duas abotuaduras, estava desidratado, e eu estava a ponto de me retirar pra meter um teco naquela gente também. Mas eu não queria virar uma mulamba... Na saída, ao ver a fila enorme que se formava para cumprimentar o maestro e o solista, desisti de fotos. Não era minha praia... Ao descer as escadas maravilhosas do teatro, alguém com uma caixa de violoncelo tacou a mesma na minha cabeça. Ouvi todos os acordes de Brahms que a tosse me impediu de ouvir minutos antes... -“Desculpe!...”. -“Tem nada, não... Fiz o mesmo ainda há pouco com uma perua...”. Leila Marinho Lage
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Daniel Guedes – Violinista
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