A Mudança (01)
Os Porteiros Mudar... A gente tenta ao longo de nossa vida mudar sempre para melhor. Pelo menos eu mudo a cada dia e faço independentemente de minha vontade. É como se o tempo fosse o meu guia, enquanto a minha mente, apenas uma boneca de pano molangolenga, levada pelas situações.
Não mudarei tanto a ponto de ser perfeita. Jamais seremos perfeitos. Podemos ser perfeitos em alguma coisa, mas imperdoavelmente primários em outras. Mudar de gênio, mudar de concepções e convicções, mudar de atitudes, tudo é movido pela necessidade. Como camaleões nós mudamos para nos adaptar – ao mundo e a nós mesmos.
Até mudar de casa pode ser uma situação amena ou drástica, dependendo da nossa visão. O ser humano tende a escolher um canto, ter suas coisas guardadas como se fosse um caracol que leva nas costas objetos, relíquias do nada. Nós morremos e tudo de material fica por aqui. Nem nosso corpo levamos. A única coisa que temos de real, verídico e de valor é nossa mente, nossa lembrança, nosso passado e nossas idéias, apesar de tudo isso ser abstrato, impalpável e não fazer a menor diferença no nosso saldo bancário, por exemplo.
Estou preste a mudar... de casa. Algo que deverá vir para meu bem. Deixei de valorizar raízes a partir do momento que larguei minha vida de alguns anos atrás. Aprendi a me adaptar, a encarar solidões torturantes, a ignorar a falta de sons à minha volta, a falta de ter com quem dividir problemas, dúvidas e inseguranças. Aprendi a ser só e tirar disso o melhor, os mais puros sentimentos, a conversar comigo mesma e ver as coisas espirituais como o único mundo possível para se suportar tanta tristeza e drama.
E hoje eu posso dizer que sou feliz – demais. Fui presenteada com momentos maravilhosos em minha vida. Conheci pessoas que fazem parte de meus pensamentos, o meu melhor, até da minha respiração. Passei a ver minha família de uma forma mais bonita, mesmo os que não eram por mim aceitos. Não porque passaram a ser melhores, mas eu os classifiquei em minha mente: são retratos de minha vida, fazem parte de meu passado, fazem parte de mim.
Há uns 5 ou 6 anos eu me mudei para um lugar gostoso de se morar. Agora este lugar me incomoda e eu preciso voar mais alto. Hoje eu mudo do meu canto não apenas por necessidade, com urgência, por situações graves, carregadas de ódio e tristeza, mas por uma vontade enorme de ser mais feliz, viver melhor, ter ainda mais paz e alegria, ter mais conforto e lazer. Tudo isso para amar mais, brincar mais, ser mais criança, voltar ao tempo e fazer a minha tribo, nadar e pegar sol no clubinho, ir a um mercadinho, conversar com aposentados na fila e comprar peixe fresco na feira. Até a hora de minha morte, que virá, esta, com todo o seu requinte. Até lá quero que minha qualidade de vida melhore.
Comecei a mudar hoje. Chamei um dos porteiros para me ajudar a retirar coisas de um armário. Ele começou a me perguntar sobre minha história. Nós nunca tivemos muito contato, apesar de eu ter uma amizade enorme com os porteiros, que comem a mesma comida que eu quase todos os dias. Esse porteiro esteve ausente por muito tempo porque estava paralítico devido a uma meningite viral. Esteve entrevado em uma cama, um moço jovem, que agora é readmitido.
Ele me falou que detestava morar de aluguel e comprou um canto pra ele: um quartinho do tamanho de minha despensa. Enquanto conversávamos, ele numa escada e eu embaixo, caiu um retrato: eu menina, recebendo uma medalha no colégio.
Imediatamente veio o texto Baú de Retratos à minha mente e tudo o que aconteceu comigo anos atrás, quando fui obrigada a mudar de casa. Uma lágrima tentou surgir e eu disfarcei. Eu tinha deixado meu passado lá em cima no armário e agora ele voltava na mesma situação que me fez escrever o antigo texto.
Olhei o chão e vi panelas que jamais usarei na vida – foram de minha mãe. Ela tinha me dito que seriam minhas para quando eu crescesse e casasse. Como são extremamente pesadas e artesanais, guardei-as para algum evento especial. Eventos aconteceram e eu nunca as usei.
O porteiro lamentava, como os outros porteiros, a minha partida. Ele disse por acaso que não tinha nada para o seu cantinho. Imediatamente, por impulso, contei unidunitê, peguei uma panela da baixela e dei pra ele, dizendo que seria mais útil pra ele do que pra mim. Ele olhou agradecido, sem ter noção do valor material da panela, e me disse: “Sempre vou lembrar da senhora ao pegar nesta panela”.
Quis mostrar a ele que a panela era de mais valor sentimental que material, mas para ele o sentimento era outro: ele ganhou um presente. Presente maior para mim foi saber que a minha mãe vai estar num quartinho de alguém que passou por muitas e segue a vida.
Minha vida seguirá sem a panela, sem o quadro, sem a colcha, sem tantas coisas das quais me desfiz, mas deixarei em meu caminho o meu nome e minha presença, com amor, carinho e respeito, em mudanças constantes, enquanto for possível mudar.
Ouçam o áudio Baú de Retratos, que está em meu site, em Vídeos e Slides/ Devaneando. Alerto que os direitos autorais estão registrados.
Leila Marinho Lage
Link para o áudio Baú de Retratos:
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