A mudança (02)
Entrando em Siena Após mil caixas, exaustivamente atadas, amarradas, enlaçadas, adesivadas, decidi salvar tudo que quebra antes do grande dia – a mudança de casa.
É difícil ser pobre... O pobre economiza em tudo. Não por ser um hábil economista, mas ele tem que sobreviver com o que sobra. Ou melhor, ele se vira, porque sobrar, nada sobra...
Eu descobri que hoje três profissões são as melhores para ganhar dinheiro: dono de cartório, dono ou vendedor de material de construção ou acabamentos e... transportador - de tudo. Tudo que se transporta, é preciso ser transportado. Não se transporta mais ou menos. Ou transporta-se, ou fica-se parado.
Eu precisava transportar objetos de valor (pelo menos para mim). Os valores são subjetivos e mudam com o tempo. Hoje o que tem valor para mim não é o mesmo que em anos atrás. Talvez eu não seja um exemplo de gente que sabe dar valor às coisas, pois geralmente eu me interesso pelo sentimental. É bem capaz de eu dar mais valor ao espelho que vi no Mundo Verde (e que vai ser meu) do que a uma jóia.
Eu não posso pagar uns dois mil para embalarem em celofane os meus “cristais”, pois o celofane e o transporte não compensariam - nem no meu coração, caso quebrassem. Sendo assim, eu pedi ajuda a um amigo - Carlos, pai de Rebeca, minha mais nova parceira em PPS e a minha colega nas doideiras, que eu coloquei no mundo.
Carlos tem um Doblo. O que eu mais precisava... Mas ele acabou confessando que ia com seu Siena mesmo, pois o outro estava no mecânico. Cheguei a sentar na cadeira quando estava ao telefone com ele. Ia ser um tal de ir e vir sem tamanho... Este amigo disse: “E por acaso você acha quer vai me deixar fora dessa?!”. Foi o suficiente para umedecer o canto do meu olho.
Outros se uniram na árdua tarefa de transportar as minhas relíquias: minha secretária, com seu leal marido Paulinho, e o irmão que o destino me deu, Aldenor. Assim a coisa poderia dar certo...
E deu. Rapidinho eles arrumaram tudo, como se fossem exímios transportadores de carga pesada e frágil. Em certo momento eu olhei para meus amigos e vi amor, puro amor. Ninguém estava ali com outra finalidade senão a de ajudar. Eles sabiam que eu tinha divido a semana entre pacientes com problemas de saúde e emendando madrugadas que me ajudaram a enrolar trecos e tralhas.
Eu poderia até dizer aos pacientes que eu estava faltando ao consultório por causa de um congresso nos States. Causaria o maior efeito. Mas, não... Preferi apenas dizer que estava enrolada com mudanças - coisa de pobre...
É difícil conseguir tempo para tudo; fazer força; subir em escadas; pegar peso; ficar sem dormir. Aos cinquenta não é mais como antigamente. Hoje dói tudo, até onde ninguém sente dor, mas eu sinto.
Meu pé deve ter algo de sinistro, pois vai pra três meses que ele não gosta de subir escadas. Lá na sala Cecília Meireles este reclamou muito. Quase tomou vida própria e gritou: “Como é que pode um degrau menor que eu?!”. É verdade: nunca vi uma escada vertical e com um espaço de degrau menor que o número 36... A cada degrau foi uma reclamação ditada pelo pé esquerdo: “PQP! Não dava para ver a Bachiana Brasileira lá do andar de baixo?!”. Deficiente físico fica relegado a segundo plano. Se eu, com meu pé tão carente de conforto, reclamo de um degrau, imaginem um cadeirante.
Meus amigos fizeram de tudo. Paulinho, marido da secreta, é chaveiro dos bons. Ele colocou tantos segredos nas portas que eu vou ter até dificuldade em abri-las. Aldenor, que tem uma inteligência privilegiada, estudava as reformas a serem realizadas. Minha secretária me perturbava com preenchimento de fichas, formulários e não sei mais o quê, a serem entregues na segunda-feira. Se ela não me perturbasse, seria motivo de repreensão, portanto, ela estava sendo o mal necessário...
Carlos, o do ex-Doblo, “só-ria”. Ele é amigo de todo mundo, ri e está sempre positivo o tempo todo, o melhor companheiro, o melhor ajudante, marido de Isabel, “a privilegiada”. O Siena dele deu direitinho para minhas caixas. Parecia que o carro dizia: “Vem, vem!!! Dá mais coisa! Olha aqui este cantinho, que foi feito para a caixa de perfumes do Boticário da doctor. E este vão daqui dá certinho para o ventilador de teto que faz barulho. O foco de luz vai na cabeça dela, mas tudo bem...”.
Aldenor está à procura de melhor emprego. Se eu fosse rica - coisa que não sou - ele seria meu guarda-tudo, até da alma, meu administrador, meu braço direito, junto com minha secretária e seu marido. Carlos procura comprador para o Siena, que seria meu, caso eu também tivesse grana. A secretária Dejê e Paulinho não precisam de nada! Eles são completos, apesar das dificuldades comuns a todos.
Maurício, meu priminho, tirou o dia para relaxar numa piscina. Sei que precisa, mas irei explorá-lo ainda muito! Ele vale uma crônica especial, só pra ele, com direito a lágrimas e tudo mais - um dia...
Eu nem agradeci a ajuda de todos vocês, meus amigos, que irão ler esta crônica, talvez daqui a meses ou anos. Sei que vocês continuarão ao meu lado. Nem sempre estarei ao lado de vocês na mesma proporção, a não ser nas horas onde jamais ninguém poderá estar além de mim.
Aqui deixo o que eu não falei na hora, porque estava preocupada com o bidet:
Vocês são o maior barato, principalmente por deixarem barato aquilo que é muito caro na vida: amizade.
Leila Marinho Lage
Rio de Janeiro lindo, 2 de novembro de 2008
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