EU VOU ENTRAR NO PARTO!
É um absurdo como sacaneiam os médicos brasileiros... Não dá pra escrever diferente, gente. A gente que está no métier é quem sabe das safadezas. Olhem só minha situação:
Chego faceira para fazer um parto em um hospital particular. Sempre atendi a paciente em meu consultório sem o marido, ou melhor, o pai do bebê. Nunca via a cara dele e, ao ir para a sala de parto, o rapaz diz: “Eu vou entrar pra assistir ao parto”.
Atentem: ele não pediu. Ele afirmou. Eu perguntei com que autoridade ele dizia aquilo, e a resposta foi que é lei e eu tinha que cumprir a lei...
Pois bem, agora disserto sobre o que acho sacanagem:
Uma pessoa não ter respeito ao médico e achar que pode tudo, vai da educação. Já foi época que ser médico era uma profissão valorizada, respeitada. Hoje em dia, se o médico causar dano à saúde do paciente, comete ERRO MÉDICO, e não tem mais delongas. Se ele salva a vida de alguém, é porque estudou pra isso e não fez mais nada além de sua obrigação. Ao mesmo tempo, lá nos hospitais públicos, na miséria e no abandono que se encontra a saúde, que não é vista aos olhos do Governo como prioridade, o médico que atura trabalhar em péssimas condições, encara desaforos e até é julgado, sem ter culpa do “sistema”. O profissional trabalha para pagar contas. Não é ideal nenhum atender o povo sabendo que o povo não está fazendo uso de seus plenos direitos.
É humilhante ter que esperar meses por uma consulta. É aviltante saber que alguém poderá morrer por falta de medicações, por falta de oportunidade ao melhor da medicina, por falta de atenção, por falta até de leito em um hospital!!! Infelizmente o médico que trabalha em algum lugar assim, compactua com esse esquema. Vai de cada consciência continuar com esta bola de neve.
E, aí, vem o Governo obrigar o obstetra a colocar numa sala de parto o marido ou seja lá quem for, mas que é leigo e que não conhecemos, que não sabemos se vai desmaiar, se vai nos atrapalhar, se vai contaminar algo esterilizado ou se está ali apenas para ver quando poderá usar qualquer situação para nos processar e tirar proveito disso.
Recentemente houve um caso de um cara que pediu para ser submetido a uma vasectomia com um cirurgião urologista. Pois bem... O safado estava preparado para processar o profissional, alegando que não permitiu tal procedimento; que a cirurgia proposta era outra e ele foi lesado. Os urologistas estão até com medo de fazer vasectomia agora...
Cada vez mais os médicos se valem do Termo de Consentimento Informado, um documento que o paciente assina e que diz das possíveis complicações de cada ato médico, além de confirmar que o paciente está concordando com a execução do que foi medicamente indicado. A que ponto chegamos...
Nós estudamos, preparamo-nos pra situações emergenciais e urgências, a gente se prepara para as intercorrências que podem acontecer em qualquer intervenção (as que são previsíveis e até as imprevisíveis); a gente passa anos burilando nossos nervos, embranquecendo cabelos, mesmo sem ganhar a justa remuneração para tais estresses, então vem um estranho e diz que VAI ENTRAR no nosso espaço de atuação profissional, sem mais nem menos, com a empáfia de um habitante de terceiro mundo... Pior de tudo: com o consentimento do nosso Governo, o mesmo Governo que não dá condições para uma assistência médica digna a toda a população...
Parto humanizado.... Muito lindo isso... Nem nos EUA a coisa funciona tão bem assim. O obstetra só aparece para botar o bacuri pra fora. Quem faz o trabalho sujo são as obstetrizes, as enfermeiras e os aparelhos colados na barriga da paciente, isso sim. O médico norte-americano foge ao máximo de um contato maior com o paciente, coisa que aqui embaixo a gente faz o tempo todo e até nos tornamos amigos dos pacientes. A gente não sabe se defender das maldades e achamos que todo mundo é bonzinho. E acho que deve ser assim mesmo, pois não existe relação médico-paciente sem empatia, sem contato, sem carinho, sem olho no olho, sem diálogo. Pelo menos, na maior parte das vezes...
Agora, venhamos e convenhamos, permitir um intruso leigo, que nunca participou dessa interação, que não foi preparado, que não sabe nada da gente e nada sabemos dele, justamente na hora em que precisamos ter mente limpa e atuarmos com técnica e precisão, mas sem influência externa, isso é sacanagem!!! Isso não vale nem o livro de patologia clínica que comprei no segundo ano da faculdade para poder estudar sobre estafilococo; isso não vale os anos que eu sofri e as noites que passei em hospitais nojentos, dormindo apenas uma hora a cada 24 horas, em camas (também nojentas) de plantões, para poder aprender como se faz um parto; isso não vale o tempo que dediquei - e minha família também- à medicina, ao estudo, o empenho para cuidar de alguém, o sacrifício que foi feito para se ter um diploma.
Fico pensando que sonho é esse de ser médico num país tupiniquim que dá direitos a quem não deve ter direito; que dá deveres que estão implícitos e não precisariam nem ser comentados; que paga uma miséria para um médico, que até a vida arrisca quando sai de casa para atender a um doente, uma vez que o perigo de assalto está o tempo todo ao nosso lado.
As contas continuam. Ser médico (honesto) hoje em dia é mais caro do que possam imaginar! Muitas vezes pagamos para podermos continuar com o tal sonho... Quem pensa que médico está por cima da nata, está enganado! Só mesmo alguns estão em condições de tirar férias, ganhar décimos terceiros e décimos quartos, de viajar para a Europa, de pagar congressos (que deveriam ser de graça, mas não são), de poder chegar ao fim do ano sem uma dívida sequer e somente estarem preocupados com a roupa que vão usar no encontro com os colegas ilustres...
Hoje temos várias categorias de médicos. Destaco algumas:
Os filhos da puta: formaram-se e nem sabem por que se formaram. Atendem todo mundo como se fosse gado. Puxam o saco de meia dúzia, babam o ovo de todo mundo. Colocam estetoscópio no pescoço e dizem que são fodões. Uns merdas, isso sim. O povo? Que se foda o povo...
Os médicos compenetrados. Geralmente têm boa condição social e possivelmente a grana venha de outra fonte de renda. Dizem que vivem a medicina por idealismo. Não se preocupam com o que entra na geladeira, que está repleta de quitutes. Contas? Isso não é importante... Eles estudam, fazem pesquisas, empenham-se ao máximo. Podem ser assim. Eles têm apoio, não estão sós - a nata.
Os médicos peões. Estes são a maioria. Trabalham que nem cornos. Fazem das tripas coração e vivem lutando. Tomam porrada a torto e a direito, e, ainda assim, insistem, talvez por não verem outra opção, ou talvez por acharem que ainda vale a pena se a alma não é pequena. Estes são alvo fácil, à mercê de “maridos” que querem entrar na sala de parto para verem o bebê nascer e depois colocarem a foto no Ortkut... A esposa? Isto é detalhe.
O caso é o seguinte: Só entra na minha cirurgia ou parto quem eu achar que merece ou quem eu ache que vale a pena estar lá ao meu lado e ao lado da paciente. E, mesmo assim, se me perturbar, vai ser literalmente expulso do ambiente.
Parto humanizado é o cacete! Sou responsável pela vida de mulheres e de bebês. Toda a minha equipe está sob minha responsabilidade. Mesmo que cada colega responda por suas decisões profissionais, quem escolheu aquela equipe foi eu, e eu respondo por ela, mas não respondo por um estranho que se intromete na minha praia. Portanto, só entra nela quem eu achar que deve e ponto final!
É ruim falar isso a alguém que terá um bebê em alguns minutos, mas um parto pode ter complicações tão graves quanto uma cirurgia cardíaca ou de crânio (alguém permite um parente assistir pra tirar fotinhos?...). Quem pensa diferente está deixando sua retaguarda desprotegida, e, no mínimo, acha que está imune às más consequências. Para mim é IMPRUDÊNCIA e falta de respeito à classe fazer de um parto uma festinha.
Leila Marinho Lage
Rio, 9 de maio de 2009
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