Clube da Dona Menô
Dona Menô
Barba, cabelo e bigode
 
 
No meu dia-a-dia de médica revezo-me entre consultório e cirurgias, mas sempre há o momento da descontração, e às vezes sinto-me mais em casa junto aos meus pacientes do que na minha residência. Talvez seja porque fiz de meu ambiente de trabalho a continuidade de minha vida pessoal.

Lá a gente não está em um consultório tradicional - está num barco. Sim, um barco! Por que não?! Se sentarem no vaso sanitário e olharem para as paredes, poderão até navegar num navio. É só imaginarem-se guiando o timão que está pendurado, olhando através da "escotilha-espelho". Se tiverem prisão de ventre, é só olharem para o teto e verão o fundo do mar. Nada mais re(laxante)...
Deram sorte de eu não trocar a porta por uma de submarino. Quase o fiz, mas pensei bastante nas pacientes deficientes, que teriam dificuldade de rodar a maçaneta e levantar a perna para saírem de lá...

Já me perguntaram se eu tinha alguma seita... Eu só posso rir... Pacientes, que vão pela primeira vez, estranham. Acham muito enfeitado para um lugar que recebe "doentes"...

As crianças adoram. Elas, sim, são autênticas e conseguem ver além, aquilo que eu quis dizer com meu parque temático. Elas aceitam tudo com naturalidade e se sentem à vontade. Até pedem para ir na tia Leila para brincarem...

Pessoas espíritas olham, olham... Uma vez uma senhora me olhou bem no fundo dos olhos e disse: "Você tem luz e seu lugar também". Não esqueço disso.

A decoração começou a ser bolada por causa do cano da descarga do banheiro, que estava vazando na parede. Eu tinha que arrebentar tudo! Não me aborreci, até porque detestava banheiro de ladrilho branco, mais parecido com um de ambulatório. Decidi fazer barba, cabelo e bigode - reformar a sala toda.

Sempre quis decorar aquele lugar. Aliás, sempre quis decorar todos os lugares onde morei ou trabalhei. É inerente à minha personalidade; já nasci assim. Sempre gostei de ler sobre o assunto, admirar objetos, móveis, até mesmo acabamentos de construção. Podem achar loucura, mas eu babo ao ver uma moldura bem trabalhada, uma marchetaria incrementada, uma parede bem acabada, uma torneira bonita, uma instalação elétrica inteligente...

Só que o lugar tem que dizer sobre nós e nos transmitir coisas boas. Assim, eu fiz tudo de acordo com minha cabeça, tentando passar uma mensagem, que poucos entendem, mas a maioria sente.

Muito me custou o empreendimento, cada detalhe, tudo muito bem pensado. Se bem que antes disso eu já fazia coleção de maçanetas, tijolos de vidro, azulejos, que aos poucos fui comprando e guardando, para um dia, quem sabe, tomar coragem e enfeitar meu canto.

A coragem chegou por acaso, com o vazamento, e justamente numa época na qual eu estava envolvida com as doenças de minha mãe. Aquilo foi o meu melhor remédio, o meu melhor calmante. Algo me impelia a fazer obras e mudar tudo, como pressentisse que dali pra frente toda a minha vida iria mudar por completo, como aconteceu, e eu não mais poderia pensar em embelezar mais nada.

Se existe um local onde eu consigo relaxar, pensar e esclarecer dúvidas é no meu consultório. Acho que não poderia ser diferente. Até minha mesa tem a ver comigo; o mármore testemunha as minhas decisões, o destino de milhares de pessoas, as quais ali apoiaram seus braços e suas vidas.

Meu consultório está ficando velhinho... O papel de parede denuncia o passar do tempo. A tinta desbota. As manchas e encardidos de tantos sofrimentos se mesclam na ainda iluminada e limpa sala. A porta, imponente, ainda saúda quem chega. O espelho das Vinte Mil Léguas Submarinas filtra para outra dimensão as energias negativas.

Dizem que um consultório guarda maus fluidos, pois abriga muito sofrimento e muita gente diferente, cada qual com um drama. Lá não! Ao chegar a meu trabalho, "carregada", eu me purifico com o ambiente. Os meus piores pensamentos, meus problemas e o que de ruim existe em mim ficam lá fora.

Meu consultório tá ficando velhinho... Eu não posso mais parar para arrumá-lo. Mas, tá no jeito, ele já fez a sua parte...
 
Leila Marinho Lage
Rio, 24 de junho de 2008